SEF acredita que tráfico de crianças vindas de Angola está controlado

Fenómeno começou a notar-se no início deste ano. Neste momento, em Portugal estão cinco adultos em prisão preventiva. Crianças podem ser traficadas para vários fins: adopção, exploração sexual ou servidão doméstica.

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Os passadores recebem milhares de euros para transportar as crianças Adriano Miranda

O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) usa a expressão “passador de menores”. São adultos que viajam de Angola com crianças, como se elas fossem encomendas que se levam de um lado para o outro. Cinco adultos estão em prisão preventiva e nove crianças em lares de infância e juventude.

A primeira detenção remonta a 25 de Janeiro. Um homem viajava para Paris com uma criança de 10 anos e um par de adolescentes de 15. Seguia a rota Luanda – Libreville – Casablanca – Lisboa – Paris. Sem qualquer embaraço, na cabine de controlo de passageiros do Aeroporto de Lisboa apresentou-se como pai ou tio. Trazia muito dinheiro e três cartões de crédito.

Apertado pelos guardas de fronteira, o homem confessou que receberia “milhares de euros” para passar aquelas crianças. Noutras ocasiões, já aterrara em Portugal na companhia de outras crianças. Alegou ser pago pelas famílias para as acompanhar até ao destino final. Volvidos poucos dias, apareceu outro homem, vindo de Paris, com falsos documentos a reclamar a paternidade do menino.

A figura do “passador” tem de ser percebida, diz o director nacional adjunto do SEF, José van der Kellen. Há alguma semelhança com os correios de droga. “Uns trazem drogas, outros crianças, mas a lógica é semelhante.” A “mercadoria” não lhes pertence e pouco ou nada sabem sobre a estrutura de tráfico.

José van der Kellen esboça um perfil: pertencem a um “certo estrato social”; não fazem parte da elite, mas têm experiência de viagem – afinal têm de cruzar fronteiras com naturalidade e de prestar qualquer esclarecimento que lhes seja solicitado. Cobram quatro, cinco, seis mil euros pelo serviço.

Adquirir novas identidades
Foi assim em vários casos detectados nos aeroportos. Perfil diferente tinha a mulher que passou crianças detectadas numa fase mais adiantada do processo de tráfico. Nem sabia ler nem escrever a mulher que se fez passar por mãe dos dois meninos (de um e de 12 anos) e da menina (de oito).

Noticiava o semanário Sol na sua última edição que a mulher desembarcou em Lisboa a 18 de Fevereiro com as três crianças e um homem. O homem regressou, levando na bagagem os passaportes usados pela mulher e pelas crianças. As crianças foram mudando de sítio enquanto aprendiam as novas identidades.

O esquema acabou por ser desmontado em Março. Um “intermediário” tentou obter documentos portugueses para as crianças na Conservatória do Registo Civil da Amadora, usando as certidões de nascimento dos filhos de um angolano residente em Portugal. O SEF foi de imediato alertado.

Pessoas mais atentas
Outras tentativas foram abortadas por acção das autoridades. A 17 de Março, por exemplo, foi interceptado no aeroporto de Lisboa um homem com duas crianças de 10 anos. Dizia-se o pai delas, mas na bagagem foram encontradas duas certidões de nascimento. Foram todos devolvidos à procedência.

“Entendemos por bem trocar informação operacional com as autoridades angolanas”, explica José van der Kellen. Já recolheram informação “substantiva e variada”. E, analisando cada caso concreto, começaram a mandar as pessoas no voo de regresso. “É importante dar um sinal a quem controla aquele tipo de fluxo e de organização. Se continuarmos a deixar entrar, o fluxo não pára.”

Tentaram o aeroporto do Porto. Já a 9 de Maio, um homem foi detido no Sá Carneiro com três crianças – de quatro, 12 e 13 anos. Também ali, os inspectores recolheram indícios de que as crianças viajavam com documentos “alheios e falsificados” e que o homem, afinal, nem seria seu familiar. José van der Kellen está convencido de que está tudo sob controlo, agora. "As coisas já não estão a acontecer. Percebem que por Portugal é um bocado difícil, que as pessoas estão atentas.”

Companhias de fora
Não há suspeita de envolvimento das companhias aéreas – nem a TAP, nem a TAGG terão qualquer responsabilidade. “[Os traficantes] recorrem à falsificação intelectual dos documentos”, esclarece o inspector. Isso significa que “os documentos são bons”, mas alguém “consegue uma emissão fraudulenta para estabelecer a relação entre os menores e quem os vai passar na fronteira”.

Não há só um grupo. O investigador julga que o fenómeno está relacionado com a forma como a sociedade se estrutura. “São pessoas que, embora vindas de Angola, são de origem cultural muito mais próxima da francofonia – são da República Democrática do Congo, do ex-Zaire, do Norte de Angola”, diz. Quem é que procuram? As comunidades em zonas francófonas.” Quer isto dizer que se dirigem, sobretudo, para França e para a Bélgica. O Reino Unido também surge como destino.

A vida é dura no Congo. Segundo o Departamento de Estado norte-americano, mulheres e crianças são empurradas para a servidão doméstica ou para a prostituição forçada no país ou fora dele – há tráfico para Angola, África do Sul, Sudão do Sul e diversos países do Médio Oriente e da Europa. Crianças que mendigam e roubam na capital, conhecidas por “chegués”, são controladas. E crianças que trabalham no sector informal – vendem água ou outros produtos, trabalham na agricultura, em minas, em pedreiras, em bares ou restaurantes – são vulneráveis.

Os vários fins do tráfico
Não se sabe para que estão estas crianças a ser trazidas. “A partir do momento em que conseguem passar a fronteira tudo pode acontecer. Ou [os traficantes] têm contactos aqui que podem levar à emissão de documentos falsificando-os e as crianças passam a ser cidadãs portuguesas, ou seguem e passam a ser franceses ou outra coisa qualquer.” As autoridades ainda não perceberam bem a que se destina o tráfico: adopção, exploração sexual ou servidão doméstica.

As investigações prosseguem em parceria com o Departamento Central de Investigação e Acção Penal e o Serviço de Migração e Estrangeiros e Investigação Criminal de Angola. Em Portugal há 11 arguidos – cinco a aguardar julgamento em prisão preventiva. As nove crianças continuam acolhidas. Convencidas de que as aguardava um bom futuro em França, Bélgica ou Reino Unido, algumas não se coibiram de revelar o seu desagrado com a polícia que lhes interrompeu o trajecto. Sentem as vidas suspensas. Algumas nem sabem expressar-se em português.

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