A propósito dos portugueses mortos em campos de concentração

Por que é que se quer ser o primeiro ou a primeira a contar pela primeira vez uma História, quando o mais provável é que já ninguém seja pioneiro/a no estudo de qualquer tema, pois o mundo não começou hoje, nem connosco?

O jornalismo de investigação e a investigação histórica são ambos muito importantes para a recuperação e, no segundo caso sobretudo, para a análise e interpretação do passado.

Consideramos que os historiadores têm tudo a ganhar com a convivência e troca de dados da sua investigação com os jornalistas. E estes, por seu turno, têm tudo a ganhar com a colaboração e com o trabalho aparentemente mais silencioso, mas mais contextualizante dos historiadores. Não se pretende aqui, embora se considere importante vir a fazer, tratar do relacionamento entre a História e o Jornalismo, mas vem isto a propósito da leitura que fizemos do artigo, em duas partes, publicado na revista do PÚBLICO, de 22 e 29 de Junho de 2014, intitulado “A História nunca contada dos portugueses nos campos de concentração”, texto de Patrícia Carvalho e fotografia de Nelson Garrido.

Desde já congratulamo-nos pela publicação desta investigação e felicitamos a jornalista e o fotógrafo por terem estudado e ilustrado este importantíssimo tema, sobre o qual nunca é demais realizar distintos estudos. Além do mais, este importante contributo agora dado à estampa num jornal de referência apresenta dados, através da recolha de novas fontes documentais e orais, que muito vêm enriquecer a investigação já feita. No entanto, queremos colocar uma questão prévia e aduzir algumas observações que poderiam ter enriquecido a investigação já feita e aquela que – esperamos – continue a ser levada a cabo, com o contributo de dois elementos muito importantes no processo de investigação histórica: a bibliografia existente e o contexto.

Relativamente à questão prévia, perguntamos: “História nunca contada”? Por que é que se quer ser o primeiro ou a primeira a contar pela primeira vez uma História, quando o mais provável é que já ninguém seja pioneiro/a no estudo de qualquer tema, pois o mundo não começou hoje, nem connosco? Com esta primeira questão prende-se a já referida consulta de bibliografia disponível. Efectivamente, para o caso português não existe presentemente uma obra de conjunto (que a equipa referida pretende concretizar), mas na vasta bibliografia disponível, apenas referimos aqui os nomes, por ordem alfabética do apelido, dos respectivos autores portugueses, que, de alguma maneira, já trataram o tema: Nair Alexandra, Miriam Assor, Manuel Loff, António Louçã, António Melo, Avraham Milgram, Esther Mucznik, Claudia Ninhos, Irene Pimentel e Ansgar Schaefer. Referimos estes nomes porque, por razões óbvias, em qualquer trabalho sobre o tema é conveniente, senão necessário, ter conhecimento da bibliografia anterior sobre o mesmo.

Por outro lado, o Editorial deste jornal questiona-se, revelando desconhecimento do trabalho feito, “porque não há um trabalho académico sério, consistente e continuado sobre os portugueses que estiveram nos campos de concentração nazis”. Na verdade, o tema relativo aos portugueses presos pelos nazis alemães em campos de concentração, englobado no mais lato assunto da atitude de Portugal relativa ao regime nacional-socialista alemão e ao Holocausto nazi e da forma como este abrangeu portugueses, nas suas diversas facetas, tem vindo a ser abordado já há anos por diversos jornalistas, historiadores e outros estudiosos.

E, como Patrícia Carvalho saberá, pois entrevistou Fernando Rosas, o tema particular dos portugueses presos e/ou mortos em campos nazis estava já a ser investigado há um ano e meio por um grupo de historiadores do Instituto de História Contemporânea. Composto por António Carvalho, Claudia Ninhos, Fernando Rosas, Paula Borges Santos, Antonio Muñoz Sánchez, Ansgar Schaefer, Ricardo Silva e, inicialmente, Irene Pimentel, este núcleo candidatou-se aliás a uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia, com a investigação “As Vítimas Portuguesas do Holocausto”, EXPL/EPHHIS/2389/2013. Apesar da avaliação positiva que o júri fez do projecto, que mereceu a classificação de “muito bom”, atestando ainda as suas “enormes potencialidades", a referida fundação estatal entendeu recusar o seu financiamento. Mesmo assim, a investigação continuou nos arquivos nacionais e um dos membros desta equipa esteve já no International Tracing Service (ITS), onde recolheu informação, estando, desde então, em contacto com uma arquivista portuguesa que lá trabalha.

Isto quanto ao título de primeira página do PÚBLICO, de apresentação do artigo, no dia 22 de Junho, e quanto ao aparente desconhecimento da bibliografia sobre o tema. Mas há algo também muito importante em qualquer investigação histórica, que é a contextualização. Aliás a própria autora do artigo reconhece-o, ao citar (p.11) a directora do International Tracing Service (ITS), segundo a qual “não havia nada de normal em estar num campo de concentração, por isso, é preciso contextualizar”. Ora, se tivesse sido levado a cabo um trabalho de contextualização mais apurado, em particular, ao proceder-se à distinção entre campos de internamento, de trabalho, de concentração e de extermínio, a interpretação das fontes teria tornado mais evidente a conclusão e a resposta à pergunta de por que morreram alguns portugueses e outros sobreviveram nesses campos.

E, nesse contexto, sem querermos abordar de forma exaustiva o assunto, tem de se distinguir entre campos de concentração existentes desde 1933, sobretudo na Alemanha, como foram os exemplos de Dachau e Buchenwald, onde morriam também muitas pessoas devido às terríveis condições ou a execuções punitivas, dos campos de extermínio, como eram os casos de Treblinka e Auschwitz-Birkenau, não por acaso instalados pelos nazis na Polónia ocupada. Os próprios nazis diferenciavam os campos de concentração, denominando-os Konzentrations Lager, dos centros de extermínio, onde funcionavam os Sonderkommando (SK). Estes campos da morte, onde foram exterminados ciganos, prisioneiros de guerra soviéticos e sobretudo milhões de judeus, eram seis e estavam situados no leste europeu, em particular na Polónia. Tratava-se de Belzec, Chelmno, Sobibor, Treblinka, Majdanek e Auschwitz Birkenau. Tal como Majdanek, Auschwitz foi um campo misto, ou melhor, um complexo de campos que integrava Monowitz, campo de trabalho escravo, Auschwitz I, campo de concentração, onde também foi construída uma câmara de gás, e Birkenau, criado em início de 1942, de extermínio.

As diferenças de natureza entre os campos de concentração e os de extermínio podem ser evidenciadas, entre outros factores, através da percentagem de mortes. Para dar um exemplo da letalidade dos campos de concentração alemães, houve, segundo estudos, cerca de 1.650.000 pessoas de todas as confissões encarceradas no sistema concentracionário, tendo a percentagem de mortes oscilado em média entre os 30% – caso de Bergen Belsen – e os 55% – casos de Mauthausen ou Ravensbrück, os mais letais. Em Auschwitz I e III (Monowitz), pereceram entre 36 à 59% dos prisioneiros, enquanto em Buchenwald, Dachau, o primeiro campo de concentração nazi, na Baviera, para judeus, prisioneiros políticos, sociais, religiosos e comuns, e Sachsenhausen/Oranienburg, a norte de Berlim, a morte atingiu, respectivamente 25%, 38% e 42% dos encarcerados.

Como se vê, nas duas partes da investigação de Patrícia Carvalho, a maioria dos portugueses referidos, excepto num dos casos, foram encarcerados, e por vezes mortos, nestes campos de concentração, todos situados na Alemanha. Outros prisioneiros mencionados foram enviados para Neuengamme, complexo de 80 campos no distrito de Hamburgo – também de extermínio através do trabalho –, Ohrdruf, parte do compleco de Buchenwald, perto da cidade de Gotha, Flossenbürg, na Baviera, para criminosos e presos “anti-sociais”, Ravensbrück, campo feminino a norte de Berlim, e Bergen-Belsen. Este campo, situado na Baixa-Saxónia, transformou-se em campo de “troca”, onde a SS encarcerava reféns judeus – dos países aliados e neutros – para serem trocados por prisioneiros de guerra alemães, mercadoria e dinheiro. Por esse motivo, viriam para aí ser a ser enviados judeus de ascendência portuguesa, em 1943/44.

Quanto à percentagem de judeus exterminados em quatro dos seis campos de extermínio da chamada “operação Reinhardt” atingiu quase os 100%: em Treblinka e Sobibor – 99,95% – e em Belzec e Chelmno – 99,99%. A quase totalidade dos 2.600.000 judeus deportados para os seis centros de extermínio foram mortos, a maior parte dos quais logo à sua chegada, ou pouco tempo depois. Em Auschwitz-Birkenau, terão sido assassinados 1.100.000 deportados, entre os quais 960.000 judeus, que assim representaram 88% dos mortos. Na investigação, baseada em fontes do próprio complexo de campos de Auschwitz, Jean-Claude Pressac chegou a uma contabilização um pouco diferente, que confirma porém o que já se sabia sobre a letalidade desses campos: entre os cerca de 800 000 seres humanos mortos em Auschwitz, contaram-se 15 000 prisoneiros de guerra soviéticos, cerca de 10.000 ciganos, 130 000 detidos, judeus e não-judeus, devido a doença, fome e ao trabalho-escravo e 630 000 judeus, adultos e crianças, assassinados nas câmaras de gás de Birkenau, logo à chegada [1].

Ora, sabendo-se isso, percebe-se, por exemplo, por que (p. 17) Emílio Pereira, apesar da sua ficha médica repleta de doenças, não foi directamente enviado para a morte, por ser “dispensável”, e sobreviveu a Buchenwald. A resposta é que não era judeu e foi enviado para um campo de concentração na Alemanha, enquanto, e como diz bem a autora, Michael Fresco “morreu com 30 anos, apenas por ser judeu”. E também porque foi enviado para Birkenau, num transporte constituído unicamente por judeus, onde, segundo um documento nazi terá morrido, um mês após a sua chegada, em 25 de Junho de 1942. De qualquer forma, cada caso é um caso, embora como diz a própria autora (p. 16) : “com a excepção de Michael Fresco, todos os casos têm a mesma indicação “prisioneiro político”. Acrescentamos que foi esse o motivo pelo qual foram encarcerados em campos de concentração nazis a maioria dos portugueses, exceptuando o judeu, cujo caso é aqui relatado.

E contrariamente ao “silêncio sobre este tema” que, segundo a autora, terá imperado “nas décadas a seguir à guerra”, já se concluíra isso e muito mais, em estudos, por exemplo, dos casos dos judeus da Holanda, França e Salónica, ou no caso de Inácio Augusto Anta (Salazar, Portugal e o Holocausto, Ninhos e Pimentel, 2013), um preso político português preso em França, enviado para o campo de Sachsenhausen-Orianenburg, a norte de Berlim, onde também começaram a funcionar câmaras de gás, para onde foram enviados presos doentes e prisioneiros de guerra da URSS, que não podiam ser evacuados pelos nazis, com a aproximação das tropas soviéticas. Levado quatro vezes às câmaras de gás, Inácio Anta ali encontraria uma horrível morte. A deportação para o campo e a morte na câmara de gás nazis permaneceu desconhecida dos leitores portugueses, por ter sido censurada, quando deveria ser publicada em O Século, de 12 de Julho de 1945. Quando a censura abrandou um pouco, o Diário Popular, de 22 e 23 de Novembro de 1945, revelou, num artigo intitulado “Homem que veio do outro mundo”, a vida no campo de concentração de Dachau de outro português – José Agostinho das Neves, natural de Lisboa e residente em Paris.

António Carvalho

Esther Mucznik

Cláudia Ninhos

Irene Flunser Pimentel

Fernando Rosas

Antonio Muñoz Sánchez

Ansgar Schaefer

(historiadores)

 

[1] Eric Conan e Denis Peschanski, «Auschwitz: la vérité», L´Express, 23/0/93, actualizado 24/6/2014, http://www.lexpress.fr/informations/auschwitz-la-verite_595879.html#bBxOqLTWuIyd6TAS.99)

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