Atingir a honra ou derrotar politicamente?

A liberdade de expressão, graças a Deus, vai-se afirmando nos nossos tribunais.

João era presidente da câmara de uma qualquer autarquia do Sul do nosso país. Arnaldo era deputado municipal do partido de oposição. As polémicas públicas entre ambos eram frequentes e conhecidas dos munícipes.

Em Novembro de 2010, após o termo de uma reunião da câmara municipal o João deu uma entrevista a um jornal regional em que afirmou: "É que eu não devo, tal como o Arnaldo, enquanto cidadão, 95 mil euros às finanças. E isso é um caso que temos de averiguar, porque uma pessoa que deve às finanças, não sei se o dinheiro que nós damos à instituição vai parar às finanças ou não.”

Arnaldo não gostou e apresentou uma queixa-crime por difamação contra o João, pedindo, ao mesmo tempo, uma indemnização de 12.500 euros. O João bem se defendeu provando a existência de uma avultada dívida fiscal do Arnaldo, mas sobretudo enquadrando as suas afirmações na discussão política entre ambos. Lembrou que, por exemplo, o Arnaldo à volta de um contrato camarário afirmara: “A forma apressada como o João tratou deste assunto, primeiro inviabilizando as obras já previstas a pretexto de uma renegociação que nunca assumiu, e depois desfraldando a bandeira da nulidade dos contratos com base numa pouco fundamentada informação jurídica, e a sua ligação anterior à referida empresa espanhola permitem-nos, pelo menos, conjecturar se todo este processo terá alguma coisa a ver com os interesses dos munícipes.”

Mas o João não teve sorte: foi julgado e foi condenado pela prática de um crime de difamação numa multa de 1280 euros e a pagar ao Arnaldo uma indemnização de 3500 euros. Nada de muito surpreendente no panorama da Justiça tradicional portuguesa: o “queixinhas” do Arnaldo ficara muito ofendido e o João tinha de pagar por isso.

Mas o João recorreu para o Tribunal da Relação de Évora e aí teve a sorte de encontrar quem conhecesse a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e compreendesse o valor da liberdade de expressão numa sociedade democrática.

Para o Tribunal da Relação, era evidente que a luta política e as “outras querelas” entre João e Arnaldo atingiam “níveis de confronto em que nenhum dos contendores se pode apresentar como isento de algum excesso de linguagem no apresentar de suspeitas” quanto à lisura da actuação do outro. E razão tinha o João ao dizer que, entre eles, estava tacitamente autorizada uma contundência de linguagem que não existe entre o comum dos cidadãos; linguagem que não visava ofender a honra, mas sim atingir e derrotar politicamente o outro. Essa era a realidade política que o tribunal de 1.ª instância ignorara, preferindo agarrar-se formalmente às suspeitas lançadas pelo João para o condenar criminalmente.

Mas mais grave do que esta incompreensão dos factos por parte do tribunal de 1.ª instância era o facto de este tribunal se ter esquecido da existência da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que consagra um entendimento da liberdade de expressão que, se não está nos antípodas da orientação tradicional dos nossos tribunais, pelo menos impõe que a interpretação do equilíbrio entre liberdade de expressão e defesa da honra se deva orientar para uma interpretação restritiva da defesa da honra e maximizadora da liberdade de expressão. E a convenção não é legislação “estrangeira”: é legislação nacional que, embora se possa considerar de menor valor do que a Constituição, tem seguramente mais valor que a legislação comum, nomeadamente o Código Penal.

Os juízes desembargadores João Gomes de Sousa e Felisberto Proença da Costa no passado dia 1 de Julho, ao revogarem a decisão da 1.ª instância e ao absolverem o João, lembraram que nos termos do artigo 10.º da CEDH as restrições ou sanções ou, genericamente, ingerências no direito de liberdade de expressão devem estar previstas na lei e mostrar-se “necessárias numa sociedade democrática”, isto é, tem de existir uma “necessidade social imperiosa” para se punir alguém por algo que tenha afirmado em sede de debate público.

E, como é evidente, na luta política à volta da vida municipal, entre figuras públicas locais, há pouco espaço para essas restrições à liberdade de expressão, sob pena de se estar a limitar a livre circulação de ideias e opiniões, impedindo a formação de uma opinião pública livre e esclarecida, condição essencial de uma sociedade democrática.

O Tribunal da Relação de Évora foi mesmo mais longe: “Numa sociedade actual moderna e saudavelmente respeitadora de direitos, a liberdade de expressão não está ao mesmo nível da defesa da honra. Esta é um direito de cariz marcadamente individual. Aquele é um direito charneira na organização de uma sociedade que se autolimita por direitos.”

Na verdade, pode dizer-se que a dimensão da liberdade de expressão existente numa sociedade revela o grau de democraticidade da mesma. Convém, pois, que seja muito ampla para bem de todos nós.

 

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