O Brasil desceu à terra

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A contestação que, há um ano, ocupou as ruas das grandes cidades brasileiras contra a os gastos astronómicos da Copa foi um sinal de progresso, que resultou da consolidação da economia e da melhoria das condições de vida das camadas mais pobres da população.

Lula gabou-se de ter tirado 40 milhões de brasileiros da pobreza para os incluir numa classe média ascendente. Dilma lidou bem com a contestação, considerando-a um sinal positivo. As obras não concluídas e os orçamentos que duplicaram acabaram por ser esquecidos quando a Copa começou e se verificou que as coisas iam, afinal, correr bem do ponto de vista logístico. Dilma acreditou que poderia tirar partido dos acontecimentos. Foi veiada nos estádios, mas isso é o que acontece nas democracias. O apoio à sua reeleição subiu de 34 para 38% desde que os jogos começaram. Ninguém se arrisca a antecipar os resultados das próximas sondagens, depois desta humilhação brutal e imprevisível. Mas, justamente porque o Brasil já não é “a pátria com chuteiras”, os analistas inclinam-se para que não venha a ter influência política significativa nas presidenciais de Outubro.

Pode, no entanto, ter o efeito benéfico de levantar o véu sobre algumas coisas que estão a correr mal ao Brasil, não apenas no mundo do futebol mas também da economia. Lula convenceu os brasileiros de que estavam prestes a chegar ao “primeiro mundo”. O seu êxito internacional e a admiração que suscitou fizeram-no acreditar que podia dispensar o mundo desenvolvido e concentrar-se em contrariar a sua hegemonia. A economia portou-se bem. A conquista da Copa e dos Jogos Olímpicos vinham confirmar a ideia de que o Brasil tinha o mundo a seus pés. Os brasileiros acreditaram. Só com Dilma perceberam que havia uma grande diferença: a “potência emergente” de que toda a gente gosta não consegue aproximar-se de alguns critérios fundamentais para ser um país desenvolvido. Na saúde, na educação, nos serviços públicos. “Primeiro mundo” também significa isso. E isso exige crescimento suficiente para manter a expectativa de prosperidade de uma nova classe média mais exigente.

Ora, é isso que não está a acontecer. Na véspera do fatídico jogo entre o Brasil e a Alemanha, as agências de rating reviram em baixa o crescimento da economia brasileira para este ano. Segundo a Fitch, será de 1,5 por cento; segundo a Moody’s de apenas 1,3 por cento. Muito pouco para um BRIC e um sinal de que a economia brasileira tem de começar rapidamente a resolver os “gargalos” que travam o crescimento e que vão desde uma burocracia pesada e ineficaz a um sistema fiscal pouco atractivo, passando pelo quase colapso das infra-estruturas de transporte. Essas reformas estão por fazer. Lula não desmereceu da confiança dos investidores internacionais na sua política económica. Dilma tem, pelo contrário, uma visão intervencionista do Estado que está a produzir maus resultados. Ninguém fala em regresso ao passado e os analistas convergem na ideia de que o Brasil já passou o Rubicão. A sua economia assenta nas necessidades mundiais das suas “commodities”, do agro-industrial ao petróleo passando pelo aço. A questão é saber como tornar outros sectores competitivos, garantindo um crescimento sustentado. E resolver o maior desafio à sua democracia: como reduzir o tamanho das desigualdades que, ainda hoje, fazem do Brasil um país profundamente injusto.

Com Lula, o grande sedutor, o Brasil cometeu um erro que um dia terá de corrigir. Acreditou que a crise financeira iria acelerar o declínio ocidental, em benefício das economias emergentes. A economia americana cresce hoje mais do que a brasileira. O Brasil acreditou que podia bater o pé ao Ocidente, bloqueando as negociações de Doha. Hoje, já percebeu o erro. Os EUA negoceiam tratados de comércio livre com o Pacífico e os aliados transatlânticos. Os países sul-americanos virados para o Pacífico criaram uma aliança para não perderam esta oportunidade asiática. O Brasil ficou a falar sozinho, sem conseguir sequer manter o Mercosul unido para negociar com a União Europeia. Dilma tinha previsto concluir o êxito da Copa com uma cimeira dos BRICS, no dia 15 em Fortaleza e onde se promete, finalmente, aprovar o Novo Banco de Desenvolvimento e o novo fundo de reservas cambiais para desafiar o Banco Mundial e o FMI. O problema é que cada BRIC tem os seus interesses e, em muitos aspectos, contraditórios. A Rússia quer quebrar o isolamento criado pela crise ucraniana. A China quer alargar a sua influência económica mas o seu interlocutor principal são os EUA. O Brasil vai insistindo em que não é sua intenção “confrontar ou concorrer com instâncias multilaterais já existentes”, diz o embaixador Graça Lima. “É apenas um mecanismo de consulta entre os seus cinco países para que possam contribuir para uma nova ordem económica e política” Que ordem é essa, ninguém diz qual é.

Pode ser que esta derrota ajude o Brasil a descer à terra, abandonando o seu comportamento arrogante. O seu soft-power continua intacto. Quem é que não queria que o Brasil ganhasse?

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