Ainda sobre Sophia e a paixão pela liberdade

Há recorrentes sintomas de que a nossa cultura política está ainda profundamente marcada por instintos monistas que convivem mal com a liberdade.

Já quase tudo foi dito sobre a justa homenagem prestada a Sophia de Mello Breyner Andresen. A beleza tranquila da sua poesia foi recordada. O seu amor à liberdade foi justamente enaltecido. Mas não é seguro que todos tenhamos presente a singularidade dessa paixão pela liberdade que distinguiu Sophia – nos tempos sombrios do antigo regime e no PREC que se lhe seguiu.

Numa cultura política marcada pela estéril oposição entre dois monismos rivais – o do Dr. Salazar e o do Dr. Cunhal e seus satélites – a voz de Sophia recusava essa falsa dicotomia fatal. A opção dela era outra. Chamava-se, simplesmente, liberdade.

Ao longo desta ultima semana, interroguei-me várias vezes sobre se a causa da liberdade realmente estabeleceu sólidas raízes entre nós. A liberdade não está obviamente ameaçada. Mas há recorrentes sintomas de que a nossa cultura política está ainda profundamente marcada por instintos monistas que convivem mal com a liberdade – e com o pluralismo que ela acarreta e que a alimenta.

Um caso intrigante tem sido o das reacções dominantes, se não mesmo uniformes, à séria crise que atingiu o grupo Espírito Santo. Não segui os detalhes – nem estou a planear seguir – desse triste episódio. Mas vejo com profunda apreensão mais uma crise em mais um grupo financeiro privado. Depois do BCP, vem agora o BES. Não sei o que passou – e, repito, não conto estudar o assunto. Se houve irregularidades, o regulador central fez bem em intervir e o Primeiro-ministro fez bem em recusar situações de favor. Mas, em termos de discussão pública, isso não pode fazer esquecer o simples mérito de o BES ter sido reconstruído a seguir ao PREC, e de existir como entidade não-estatal. Sem o pluralismo de grupos económicos fortes, o monismo centralizador é reforçado e a liberdade é enfraquecida.

Outro estranho sintoma de uma atmosfera monista parece-me residir nas ameaças da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista contra o PÚBLICO. A Comissão quer proibir – e cobrar multas avultadas em caso de desobediência – a publicação de artigos escritos por estagiários. E quer determinar o tipo de trabalhos que os estagiários podem fazer. O PÚBLICO argumenta persuasivamente que um estagiário "não aprende nada se, durante o estágio, se limitar a fazer 'exercícios' que não visam a publicação". Mas, antes da questão substantiva, existe uma questão procedural: por que motivo deveriam as actividades dos estagiários ser uniformemente definidas por uma autoridade central?

Deve ser o mesmo motivo que levou já o sindicato dos professores a protestar contra um tímido ensaio de descentralização de competências na área da educação estatal, ao nível do ensino básico e secundário. "Nem pensar", declarou a Fenprof acerca de uma eventual transferência da tutela dos professores para os municípios. Mas "nem pensar" porquê? Por que motivo deve o sistema escolar ser centralmente dirigido a partir do Ministério da Educação? Compreende-se que essa tenha sido a opção do Dr. Salazar – que o Dr. Cunhal, sintomaticamente, nunca contestou. Mas por que motivo deve ser a nossa?

Uma visão do mundo muito diferente pode ser vislumbrada na recente decisão do Tribunal Supremo norte-americano sobre o seguro de saúde obrigatório. Tratava-se de saber se empresas comerciais, que alegassem motivos religiosos, podiam ou não recusar custear seguros dos seus empregados relativos a práticas anticoncepcionais. O caso não é simples, e pode vir a ter consequências não intencionais, mas o que importa aqui sublinhar é que o Tribunal decidiu a favor da isenção – para proteger a liberdade. Não porque tomasse uma posição substantiva sobre a justeza de uma ou outra posição substantiva, mas porque tomou uma posição procedural que protege a liberdade de existirem diferentes posições substantivas.

Esta distinção entre matérias substantivas e matérias de procedimento é fundamental numa cultura de liberdade. Ao escolher a liberdade, certamente não podemos garantir que vamos concordar com tudo o que a liberdade vai permitir que os outros façam. Podemos mesmo garantir o contrário: a liberdade vai permitir que outros façam muitas escolhas com as quais discordamos. Mas, se as escolhas pacíficas dos outros carecessem da nossa concordância – ou da concordância de uma autoridade central, ou da concordância de todos reunidos em colectivo – o que restaria da liberdade?

 

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