Notícias da velha tia chata

A ideia de que a Europa é uma velha tia chata, que mais não faz do que ameaçar-nos com uma lista de tarefas, não é, como todos sabem, uma expressão minha, mas retive-a, com muito prazer, da intervenção do actual primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, no Senado do seu país.

Renzi utiliza, aliás, uma linguagem metafórica exuberantemente sedutora e a sua primeira intervenção perante o Parlamento Europeu, pela inteligência, cultura, firmeza e percepção da globalidade dos problemas, ficará como uma data marcante num auditório habituado a discursos cinzentos ou insultos grosseiros.

São ainda muito débeis os sinais de que a velha tia chata pode fazer com que reencontremos o amor de família e a saibamos perdoar e com ela viver e ser felizes. A simples ideia de que alguns dos seus mais fiéis capatazes, como Olli Rehn (o Rehn do terror de Krugman), vão procurar outro emprego dá espaço para um suspiro de alívio, embalado na esperança de que o seu substituto finlandês não venha a assumir o mesmo pelouro. Permito-me até sugerir à tia que, na impossibilidade de o manter como comissário sem pasta, o coloque na Administração ou no dos Assuntos Internos.

A primeira notícia interessante da velha tia chata veio do Conselho Europeu de 27-28 de Julho – finalmente um que ficará para a história, como Bruxelas sempre considera que acontece com as mais abstrusas reuniões –, porque esta assinala a admissão de que é o Parlamento Europeu que escolhe o presidente da Comissão e que, depois, o confirmará, bem como aos restantes membros da sua equipa.

Para a história ficará, também, o final dos consensos sempre proclamados a propósito de todas as grandes decisões, numa prática muito pouco democrática. Cameron opôs-se à eleição e saiu derrotado na má companhia do primeiro-ministro húngaro, que, se a velha tia se recordasse das regras relativas aos princípios do Estado de direito, muito provavelmente não estaria naquela sala.

Aqui chegado e fazendo questão de, enquanto cidadão europeu, reconhecer toda a legitimidade a Juncker para exercer o cargo, na medida em que foi o candidato do partido mais votado, não tenho muitas ilusões sobre o que se poderá esperar do novo presidente e da sua capacidade para humanizar a tia.

Com respeito, lembro que, quando, dez anos atrás, Juncker foi convidado para o cargo, se escusou, afirmando que tinha que cumprir o mandato que assumira como primeiro-ministro do seu país, mas essa imagem é facilmente obnubilada pela forma como exerceu o cargo de presidente do Eurogrupo, cúmplice e protagonista das políticas de austeridade que foram estruturando o carácter da velha tia.

Sobre Portugal, lembrava-me de ter ouvido Juncker confessar que fora opositor à ditadura na sua juventude a até partira vidros do consulado português no Luxemburgo, mas, infelizmente, numa recente acção de campanha em Portugal, ouvi-o proclamar algo que não resisto a recordar aos mais distraídos e que não há vidros partidos que possam apagar. A propósito dos socialistas portugueses, ofereceu esta pérola: "Não acreditem nos socialistas. Eles lembram-me um dos vossos compatriotas mais prestigiados: Cristóvão Colombo. Quando partia, nunca sabia para onde ia; quando chegava, nunca sabia onde estava – e era o contribuinte que pagava a viagem. É desta forma que procedem os socialistas dos nossos dias".

Mesmo admitindo que a súbita adesão à teoria dos amigos de Cuba (Alentejo) sobre a nacionalidade de Colombo mais não representou que um excesso de eleitoralismo, a desvalorização da descoberta dos Estados Unidos é verdadeiramente desconcertante. O eurocentrismo em todo o seu esplendor? Enfim…

Mas este é um assunto que já deu matéria para uma primorosa crónica de Ricardo Araújo Pereira e, por isso, retomemos os débeis sinais de mudança da velha tia chata, que nenhum de nós gosta de ver fazer estas figuras públicas e ainda menos quer que venha a falecer por recusa de medicação, ou por insistência nos tratamentos medievais de extracção do sangue dos familiares, como alguns dos seus mais maçadores amigos, como Von Rompuy, lhe sugerem, no desenho que apresentaram ao último Conselho Europeu.

Ainda assim, eternos optimistas, conseguimos vislumbrar alguns sinais nas Conclusões que mostram que um dos seus mais irrequietos sobrinhos, Matteo Renzi, capaz de uma grande politesse, após uma cuidadosa conversa com a zelosa governanta alemã, logrou obter da tia umas vagas – mas, apesar de tudo, mais avançadas –, promessas quanto ao crescimento e à flexibilização do diktat financeiro com que dá cabo das nossas vidas. É pouco, claro está, mas esperemos que seja um começo.

Preferimos, aliás, ignorar as espertezas e manhas com que esperam reconduzir o tresmalhado sobrinho Cameron ao redil, acenando-lhe com um não-aprofundamento da integração, na esperança de que na Inglaterra, como em Portugal, com papas e bolos se enganem os tolos.

Mas, aqui chegados, não será legitimo deduzir que a velha tia é uma fiel leitora de Tomaso de Lampedusa ou pelo menos que o absorveu através do extraordinário Burt Lancaster no belíssimo Leopardo e que o que está a fazer é mudar o acessório para assegurar que nada mude?

Essa é uma interpretação mais do que legítima, mas que se confronta com algumas dificuldades. A governanta, na sua fixação nas finanças sãs, semelhante a qualquer coisa que já conhecemos por cá, tem um bom pé-de-meia arrecadado, mas não dá sinais de querer qualquer forma de cooperação com os primos. E alguns estão mesmo nas lonas e outros totalmente fartos e atrevem-se a explicar à tia certas coisas que nós também sabemos, mas a que temos medo de nos referirmos sequer.

E é aí que surge o primo Renzi – de quem não sabemos qual será o futuro, porque definitivamente Hollande nos deixou numa condição de gatos totalmente escaldados –, que resolve ir ao Parlamento e alegrar-nos a nós e seguramente a Nanni Moretti, fazendo-nos esquecer os sucessivos D’Alema da esquerda italiana.

E com intenso júbilo ouvimos Renzi recordar as grandes raízes grega e italiana da cultura europeia, congratulando-se por suceder à Grécia na presidência do semestre, em vez de a esconjurar como um primo leproso, dizendo que somos uma comunidade (família, tia?) em vez de uma expressão geográfica.

Na impossibilidade de seguir tudo o que de inteligente e motivador disse Renzi, aqui fica uma breve passagem: “Não creio que possamos desvalorizar a questão financeira (....), mas a Itália defende que o grande desafio do semestre não é só marcar reuniões (...), mas que o grande desafio é reencontrar a alma da Europa. O sentido profundo da nossa vida comum. Se se trata só de unir burocracias, chega-nos a nossa e com ela avançaremos. Há uma identidade comum a reencontrar”.

Mas, tia, permita-me que lhe lembre, sobretudo, um alerta muito particular de Renzi: é que ele próprio ainda não era maior quando foi assinado Maastricht, como sucede com tantos europeus para os quais usou a bela expressão "geração Telémaco" (o filho de Ulisses, que aguardou 20 anos o regresso do pai) e que esta geração não vê “... o fruto dos nossos pais como um dado permanente, mas como uma conquista que é preciso renovar todos os dias, sabendo que não é simplesmente na moeda que está na nossa algibeira que reside o nosso destino: é no termos o direito de nos chamarmos herdeiros e de assegurar um futuro a esta tradição. Devemo-lo aos que morreram no decurso dos séculos para que a Europa não fosse apenas uma expressão geográfica, mas uma expressão de ânimo”.

Tia: são já os seus sobrinhos-netos que a interpelam. É preciso que saibamos dar-lhes uma resposta e não enfadá-los ou conduzi-los à ira, porque os dias da ira não são os dias da Europa.

Presidente do Instituto Europeu da FDUL e catedrático Jean Monnet

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