Pode parecer estranho, mas a FIFA não manda em tudo

Crónica "Passe de Letra", uma outra forma de olhar para o Mundial.

A equipa tinha acabado de chegar ao Japão ao fim de 30 horas enfiada em aviões e aeroportos, e o craque chorava copiosamente. Os seus olhos esguichavam um oceano de gotas amargas como se lhe tivessem partido as canelas mil vezes, e depois mil vezes mais.

O craque saía do avião ao mesmo tempo que saía da adolescência, uma tempestade perfeita para o vendaval de saudade que nos derruba quando encontramos o amor eterno pela primeira vez - aquele que nunca vai acabar para sempre nos próximos meses.

“Quero voltar”, chorava. “Tenho muitas saudades dela.” Os colegas, todos profissionais com carimbo da FIFA, e um deles até jogador de selecção, tiveram de apelar ao bom senso e pôr fim à birra, como se exigia a uma equipa séria e focada no sucesso: de braço no ar, do roupeiro ao presidente, cada braço um voto, decidiram por maioria que Walter Casagrande, o jovem rebelde e boémio que embebedava os adversários do seu Corinthians com golos, ia ter de ficar no Japão com os companheiros e lavar a saudade com muitas lágrimas para ela mingar e caber no coração.

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A década de 1980 ainda não tinha chegado a meio e aquela equipa de profissionais com carimbo da FIFA mostrava ao mundo que era possível gerir um clube e ganhar campeonatos com o envolvimento de todos em tudo: da contratação do treinador até à venda de jogadores, da marcação de estágios até à dor de Casagrande pela falta da namorada.

Naquela época, quando o Brasil vivia ainda debaixo de uma ditadura, o Corinthians de Casagrande, Sócrates, Wladimir e Zenon jogava em cima do sonho de uma democracia: a Democracia Corinthiana.

O nome tinha sido adaptado pelo jornalista desportivo Juca Kfouri, a partir de uma frase de Millôr Fernandes: “Se a ditadura continuar permitindo espectáculos como este, vamos acabar caindo numa democracia.”

O líder natural do movimento era Sócrates, o capitão do Corinthians, licenciado em Medicina, mestre em futebol e doutorado em activismo político. “Ali nós estávamos a discutir o país sob a óptica do futebol”, resumiu o astro brasileiro no documentário “Ser Campeão é Detalhe: Democracia Corinthiana”, de 2011.


No país, o povo não podia escolher o seu Presidente; no Corinthians, toda a gente podia escolher tudo. E muitas vezes escolhiam entrar em campo com mensagens políticas nas camisolas, no lugar de marcas de bebidas ou de operadoras de telecomunicações.

Os últimos representantes da ditadura que viria a morrer em 1985 não gostavam, mas as frases escritas nas costas de Sócrates e companhia eram o dedo médio levantado que muitos outros brasileiros receavam mostrar.

As palavras de ordem multiplicavam-se, nas camisolas e em faixas levadas para dentro do campo antes do início dos jogos. “Dia 15 vote”, “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”, “Ser campeão é detalhe”.

Já ninguém espera que as estrelas dos nossos tempos entrem em campo com mensagens politizadas, contra a violação sistemática dos direitos humanos um pouco por todo o mundo e guerras como a que mata milhares de crianças na Síria. Desafiar as autoridades com um discurso ligeiramente diferente do "treinar muito para agradar ao mister" não podia ser repetido agora, dirão os defensores do futebol arranjadinho e bem penteado da FIFA. Mas esses são os mesmo que disseram a Sócrates, a Casagrande, a Wladimir e a Zenon que o sonho deles também não era possível. São sempre os mesmos, por mais que o tempo passe. Quem não sonha tem essa vantagem: não envelhece nunca.

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