Só a democracia permite que haja recursos para a próxima geração

Estudo mostra que maioria das pessoas está disposta a sacrificar recursos para si em prol das gerações futuras, mas para que a minoria egoísta não os esgote é necessário haver uma votação universal.

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A floresta amazónica simboliza os recursos do planeta que se querem passar às gerações seguintes Nelson Garrido (arquivo)

Se o mundo coubesse num jardim de um hectare, que dentada é que a humanidade já lhe teria dado? E o jardim que sobraria seria capaz de se regenerar e receber os nossos filhos, netos e gerações vindouras? As duas questões são metafóricas, mas os recursos que nos permitem viver são terrivelmente concretos. O solo que nos dá comida, a água que bebermos, o ar que respirarmos, tudo tem um fim e nós podemos acelerá-lo. Por isso, uma equipa de investigadores quis perceber qual a disposição das pessoas para avaliarem os recursos que existem e deixarem o suficiente geração após geração. Segundo o trabalho, a maioria está pronta a sacrificar recursos para si em prol do futuro. Mas para que isso acontecesse foi necessário aplicar a votação, conclui um artigo científico publicado na quinta-feira na revista Nature com o título invulgarmente simples e poético “Cooperar com o futuro”.

"A observação surpreendente é que, apesar de haver uma minoria de pessoas que não quer cooperar, a maioria vota altruisticamente”, explica Martin Nowak num comunicado da Universidade de Harvard, Estados Unidos. O investigador é um dos líderes da equipa que conta ainda com cientistas da Universidade de Yale, em New Haven, EUA. “Essas pessoas não estão a votar para maximizar os seus próprios benefícios, e é isso que permite cooperar com o futuro.”

Esta demonstração está de acordo com estudos recentes em que se mostra que as pessoas são, em geral, altruístas, contrariando a ideia prévia de que os humanos são racionais e egoístas nas suas escolhas, principalmente quando os sacrifícios de hoje só beneficiam as gerações futuras.

Para chegar a estas conclusões, a equipa fez o Jogo dos Bens Intergeracionais. Neste jogo, cada grupo de cinco pessoas representa uma geração. Esta geração tem à sua disposição um grupo de cem unidades. Cada pessoa de um grupo de cinco pode tirar entre 0 a 20 unidades. Se no final desta geração ficarem 50 ou mais unidades, então, na próxima geração o grupo de 100 unidades regenera-se. Se ficarem menos de 50 unidades, o grupo não regenera e a próxima geração de pessoas fica sem unidades e “morre”. A parcela justa para que tudo corra bem é se cada um retirar apenas 10 unidades.

Estas unidades não são simbólicas. Os cientistas colocaram este jogo na plataforma virtual Amazon Mechanical Turk. Aqui, os participantes dos EUA puderam inscrever-se no jogo, ganhando automaticamente meio dólar, e ganhar ainda um bónus de acordo com as unidades que retiram. Não eram montantes altos, mas tornaram real as escolhas que fazem no jogo. Se os grupos que participassem no jogo não fossem altruístas, a geração seguinte de cinco pessoas não poderia participar no jogo e ganharia só meio dólar pela inscrição.

No primeiro jogo, houve 18 partidas iniciais de cinco jogadores. Cada partida inicial funcionou como a primeira geração. Na maioria dos casos, a soma das unidades retiradas por cada grupo de cinco pessoas era superior a 50 unidades. Desta forma, o grupo de unidades não se regenerava para a segunda geração. Dos 18 grupos iniciais, só houve 4 grupos que cooperaram e deram lugar a uma segunda geração, destes só dois grupos cooperaram e deram lugar a uma terceira geração. À terceira geração já ninguém cooperou e não houve gerações seguintes.

Os limites do mercado livre
Numa primeira avaliação, pode interpretar-se que há uma falta de cooperação generalizada face ao futuro por parte dos participantes. Mas os investigadores verificaram que 68% das pessoas tiraram dez ou menos unidades. Houve, porém, uma minoria que açambarcou mais do que dez unidades e impediu a cooperação.

Para contornar esta questão, os cientistas inspiraram-se nos sistemas democráticos e abriram a decisão do número de unidades que cada pessoa retiraria à votação dos participantes de cada grupo. Assim, cada uma votaria no número de unidades a retirar. No fim, o programa fazia a mediana desse valor que seria o valor final que cada um poderia retirar.

Se imaginarmos um grupo de cinco pessoas a votar 10, 10, 10, 10 e 20 unidades, a mediana neste caso é o terceiro valor em ordem crescente — ou seja, o 10. Por isso, por decisão democrática, é permitido a cada pessoa tirar 10. O resultado das cinco pessoas é 50, o suficiente para haver mais uma geração. A mediana permite, neste caso, que a escolha da maioria vingue e os recursos se mantenham.

Nesta versão do jogo, os resultados foram completamente diferentes: os 20 grupos que iniciaram o jogo e votaram previamente deixaram sempre recursos para a próxima geração de pessoas. “Esta votação, que tem em conta a mediana, acalma os participantes que se preocupam com as gerações futuras, mas que têm medo que os outros vão exaurir os recursos: como o resultado da votação é aplicado a todos os jogadores, toda a gente recebe o mesmo e ninguém sente que ficou em desvantagem”, lê-se no artigo.

Uma terceira versão do jogo deu o voto a três das cinco pessoas, e as duas restantes poderiam retirar as unidades que quisessem. Neste caso, com o voto parcial, só uma pequena percentagem dos grupos é que mantive as unidades acima da linha de água, servindo a próxima geração.

Esta versão é semelhante ao acordo de Quioto em que, apesar de haver uma votação para a redução das emissões de dióxido de carbono, há nações que não o ratificaram e por isso não estão obrigadas a nada. “Isto ilustra por que é que o mercado livre falha em resolver problemas como as alterações climáticas”, defende Martin Nowak. “Mesmo que se queira cooperar com o futuro, isso não se faz porque há o receio de se ser explorado pelo presente.”

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