Um marco da historiografia portuguesa

Trata-se de um grande livro que revela uma maturidade excepcional, única no caso de um historiador português.

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Óleo de Albert Eckhout (1611), mestiço brasileiro com espingarda e espada, Museu Nacional da Dinamarca DR

A lista dos historiadores e cientistas sociais portugueses com projecção internacional é pequena. Pelo alcance das suas abordagens de história comparada, que ultrapassam em muito a história de Portugal, Francisco Bethencourt ocupa nela um lugar de destaque.

O seu percurso é já uma referência para as gerações mais jovens, sobre as quais tantas esperanças existem. Os seus livros foram escritos em francês ou inglês e traduzidos para espanhol e italiano, sempre em excelentes editoras, a começar pelo acolhimento que mereceram no Brasil, da parte da Companhia das Letras. A história da bruxaria e da Inquisição na Europa do Sul, a da expansão portuguesa no contexto europeu e, agora, a do racismo no mundo ocidental são os principais domínios em que o autor tem praticado análises baseadas em grandes problemas, que merecem respostas de sentido comparativo, situadas a uma escala mundial.

Conheço bem o autor, com quem dividi projectos, experiências de ensino e tantas outras coisas. Sem esconder a amizade pessoal e a enorme admiração que tenho por ele e pelo conjunto da sua obra, não posso deixar de afirmar que a publicação de Racisms: from the Crusades to the Twentieth Century constitui um marco não só da historiografia nacional como internacional. Trata-se  de um grande livro – que revela uma maturidade excepcional, única no caso de um historiador português, construída ao longo de décadas de investigação – com o qual se aprende muito e que, por isso mesmo, merece ser lido e criticado.  

A primeira constatação diz respeito às concepções do tempo e da mudança, no livro em causa. A ambição de Bethencourt ultrapassa os limites fixados no título, uma vez que se trata de uma história do racismo na longa ou mesmo longuíssima duração – um projecto situado na contramão da ideia, que se instalou em programas de investigação e de ensino nacionais, de partir a história em compartimentos cronológicos estanques, privilegiando o estudo do que é contemporâneo por ser considerado de forma falaciosa mais apetecível, porque fácil de reconhecer. Por isso, a sua abordagem inicia-se com a Antiguidade Clássica de gregos e romanos, para terminar nos nossos dias. 

Porém, ao examinar as diferentes configurações do racismo, Bethencourt não procurou dispô-las segundo um padrão de progresso ou de modernidade – critério que utilizara na sua história comparada da Inquisição. Ou seja, o estudo das diferentes configurações do racismo não corresponde a nenhum processo de civilização, a partir do qual sejam pensados os avanços ou os retrocessos. Pelo contrário, Bethencourt foge a aplicar qualquer tipo de juízo de valor que possa situar o racismo numa qualquer escala de progressão ou de defesa de direitos emancipatórios. Assim, abdica tanto dos ensinamentos de Norbert Elias, quanto à defesa de uma ética do processo da civilização enquanto modo de controlar as pulsões e a violência, como das ideias de Lévi-Strauss sobre os diferentes tipos de progresso, ou ainda da chamada de atenção de John Rawls para os direitos alcançados pelos povos civilizados. 

Segunda constatação: o livro está focado num problema principal, o da relação entre racismo – enquanto acção colectiva de discriminar ou de segregar em relação a grupos com a mesma descendência – e poderes, nomeadamente impérios. Sem o saber, Bethencourt reproduz a este respeito uma ideia de Hannah Arendt, em As Origens do Totalitarismo (1951), que também estabeleceu uma relação de causalidade entre imperialismo e racismo. Porém, enquanto para esta última autora foi o expansionismo europeu oitocentista – coevo das ideias de Gobineau e de Darwin acerca da selecção das espécies e do anti-semitismo francês do caso Dreyfus – que suscitou complexos de superioridade dos brancos em relação aos negros e abriu as portas às reivindicações de uma raça ariana, nomeadamente em relação aos judeus, para Bethencourt será necessário ir buscar as origens destas mesmas formas de racismo à prática da escravatura e da Inquisição, recuando pelo menos ao século XVI.

É através desse recuo no tempo que será possível ver o modo como convergem no racismo: ideias, comportamentos, interesses, a par do papel mais estrutural dos mercados e das instituições. No fundo, um conjunto de factores que relativiza o termos em que é colocada a relação de causalidade entre imperialismo e racismo, cara a Arendt. Mais concretamente é o que sucede com a prática da pureza de sangue, vigiada pela Inquisição ibérica e partilhada pelas sociedades de antigo regime, as quais estavam fundadas em valores de defesa da honra nobiliárquica, sistematizados pelo Conde de Boulainvilliers no Século das Luzes. E é o que também acontece com a prática da escravatura – incluindo doze milhões de africanos transferidos para as Américas entre os séculos XV e XIX –, onde se articulam interesses de grupos mercantis, com lógicas de mercado, por sua vez articuladas com o funcionamento dos impérios europeus, mas que nem sempre se encontravam em correspondência com a geometria destes últimos.

Terceira constatação, tal como sucede com outros historiadores do racismo, Bethencourt não procura fazer uma história das ideias, mas uma história social e política do racismo. Uma  história que relacione comportamentos discriminatórios de grupos contra outros grupos, com poderes e instituições. O objectivo é, pois, bem ambicioso, sobretudo quando, a uma escala tão macroscópica, o autor tem de prescindir dos particularismos dos arquivos, para identificar tendências a partir de algumas obras consideradas chave. Um ângulo de análise que se acentua nos últimos dois séculos devido à multiplicação de teorias e de ideias sobre o racismo, as quais ocupam um espectro político muito ambivalente. É o que sucede com a fina análise da representação da Europa e das outras partes do mundo, em figuras femininas, criada por Ortelius, no tempo de Filipe II. Ou com a interpretação do Essai sur l’inégalité des races humaines (1853) de Gobineau, um autor cujas perspectivas racistas e de defesa do arianismo não implicavam anti-semitismo.

Como se infere do livro em causa, a relação existente entre o mundo, mais ou menos autónomo, das representações, das ideias e das teorias racistas, e o das práticas sociais e políticas só analiticamente – a partir do estudo de configurações específicas – pode ser estabelecida. Porém, para se compreender a relação entre o comportamento das massas e os aspectos políticos, num quadro de preocupações que não anda longe das que são formuladas por Bethencourt, vale a pena retomar Hannah Arendt. Esta, ao interrogar-se sobre a onda de violência racista, anti-semita, em crescente expansão na década de 1930, considerou que uma tal explosão comportamental poderia ser equiparada à violência dos sans-culottes contra as classes nobiliárquicas na altura da Revolução francesa. Pois, como argumentara Tocqueville, uma tal violência só se desencadeia quando os grupos que são objecto de uma tal violência discriminatória perdem o poder ou deixam de estar a ele associados, como amigos e colaboradores. O mesmo acabou por suceder aos judeus, alvo de violência quando foram preteridos como colaboradores dos poderes e do Estado nazi.

Último aspecto, entre a riqueza das comparações dos quadros de racismo exploradas por Bethencourt, uma existe que merece discussão. Refiro-me à que envolve uma avaliação das diferenças entre comportamentos discriminatórios nas Américas. Será o Brasil de um ponto de vista social e racial mais ameno, em relação aos Estados Unidos da América? Bethencourt pensa que sim, retomando um ponto de vista que emergiu sobretudo nos anos de 1930 e que era partilhado, entre outros, por Blaise de Cendrars: “Ao contrário dos Estados Unidos da América do Norte, nos Estados Unidos do Brasil, a questão da cor não se coloca. Ela também não se coloca no México, tão-pouco nas outras repúblicas da América do Sul, e é a ausência desta questão da cor que dá a sua aparência de humanidade profunda às democracias sul-americanas, conscientes da sua missão histórica” (pp. Histoires vraies, Paris: Grasset, 1938, pp. 192-193).

Quando as comparações estabelecidas pela análise histórica reiteram pontos de vista expressos na época ou nas configurações que analisamos, corre-se sempre o risco de sujeitar a história a um ponto de vista, parcial e porventura de combate, que faz parte das próprias lutas políticas que procuramos compreender. Sair deste imbróglio não é uma tarefa fácil, passível de ser feita de uma vez por todas, a coberto de um qualquer método ou modelo teórico.

Todas estas breves reflexões são suscitadas pelo grande livro de Francisco Bethencourt sobre os racismos. De grafismo irrepreensível, trata-se de uma obra que ficará na história da historiografia portuguesa e da nossa cultura como um marco. De leitura obrigatória, para ser lido e criticado pelas futuras gerações.
 

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