Frases do exame de Português podem não ter sido escritas por Lídia Jorge

A polémica em torno de um eventual erro nos critérios de correcção do exame nacional de Português poderia complicar-se, já que a própria autora da maior parte do texto ali publicado admite que duas frases não sejam da sua autoria. A Associação Portuguesa de Linguística, no entanto, considera que para a correcção da resposta isso não é relevante.

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A questão vale meio valor em 20 e um erro pode prejudicar os alunos, como lembram os autores de uma petição que já circula na Internet Paulo Pimenta

A frase que os alunos do 12.º ano tiveram de classificar na questão 2.3 do grupo II do exame nacional de Português pode não pertencer a Lídia Jorge, como admite a própria escritora e autora de pelo menos a maior parte do texto, originalmente publicado na revista Camões. Mas a representante da Associação Portuguesa de Linguística (APL) no Conselho Científico do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) considera que esse problema, a verificar-se, não interfere com aquele que a organização denunciou: a existência de um erro nos critérios de correcção da prova, que continua a querer ver corrigido.

Em causa está uma questão sobre o “funcionamento da língua” e o pedido feito aos alunos para que classifiquem o acto ilocutório presente numa determinada frase. Segundo os critérios de correcção publicados no próprio dia pelo IAVE os alunos deveriam ter escrito “compromissivo”, mas a Associação de Professores de Português e a APL defendem que a resposta correcta seria “assertivo”. A questão vale meio valor em 20 e um erro pode prejudicar os alunos, como lembram os autores de uma petição que circula na Internet, reclamando a revisão dos critérios de correcção do exame.

No exame, o texto publicado no grupo II é atribuído a Lídia Jorge. Este sábado, no entanto, a escritora, quando contactada pelo PÚBLICO, admitiu não estar absolutamente certa de ter escrito as duas últimas frases do testemunho analisado pelos alunos do 12.º ano e originalmente publicado na página 108 da edição da revista Camões n.ºs 9-10, de Abril-Setembro de 2000. Já Almeida Faria, que escreveu igualmente sobre Eça de Queirós um texto publicado na página 107 da mesma revista, assegura ter “a certeza absoluta de que as duas frases são” da sua autoria.

Em causa está aquilo que parece ter sido um erro da própria revista. Uma rápida pesquisa na Internet permite encontrar o texto de Lídia Jorge sem aquelas frases e o  de Almeida Faria que as contém. Nas páginas da trevista em PDFque podem ser descarregadas no sítio do Instituto Camões é diferente. Aqui, tanto o texto de Lídia Jorge como o de Almeida Faria, ambos sobre Eça de Queirós, acabam precisamente da mesma forma: “(…) O que não parece vir a propósito, embora venha. Como um dia veremos.”

“Lembro-me perfeitamente, tenho a certeza absoluta. Tencionava voltar a abordar o assunto a que me referia nesse parágrafo, daí essa referência”, disse o escritor Almeida Faria, que escreveu: “Cem anos depois [de Eça], o mago das hipálages chama-se Dalton Trevisan, superqueirosiano queira ou não. O que não parece vir a propósito, embora venha. Como um dia veremos.”

Lídia Jorge não é taxativa: "Não tenho a certeza se escrevi isso, foi há muito tempo... E face à convicção de Almeida Faria não vou dizer que o fiz. Na verdade, é impossível termos terminado os textos da mesma forma, pelo que se ele tem a certeza absoluta e eu não me lembro, as frases devem ser dele”, afirmou, quando contactada pelo PÚBLICO.

A escritora, que foi professora de Português, assegura, no entanto, que ainda que não sejam da sua autoria, as duas frases “fazem sentido” no texto publicado no exame. Nele, os cerca de 40 mil alunos que fizeram exame na quarta-feira puderam ler: “É por isso que, para além do culto que a obra de Eça legitimamente merece, por mérito próprio e grandeza genuína, se deve reconhecer, para sermos justos, que muita da admiração totalitária que Eça desencadeia nasce porventura duma espécie de preguiça e lentidão em entender, ainda nos nossos dias, a linguagem diferente daqueles que lhe sucederam. O que não parece vir a propósito, embora venha. Como um dia veremos."

Segundo a escritora, a penúltima frase poderá ser entendida como um parêntesis e a última como “a manifestação da convicção de que um dia todos verão que o deslumbramento total em relação a Eça de Queirós tornou opaco tudo o que vem depois, impedindo a valorização de outros autores portugueses”. "A convicção de que tal acontecerá e também o desiderato, o desejo de que tal se verifique”, especificou.

De acordo com a nova terminologia linguística, os actos ilocutórios dizem respeito às acções que se realizam através do simples facto de se dizer algo, numa determinada situação de comunicação, sob certas condições e com determinadas intenções. Ou seja, o contexto em que a frase é dita ou escrita é essencial.

Em declarações ao PÚBLICO, Sónia Rodrigues, que já pediu ao IAVE que corrija os critérios de correcção, considera, no entanto, que o facto de as palavras poderem não ter sido escritas por Lídia Jorge não teve influência nas respostas dos alunos. “As duas frases encadeiam-se perfeitamente com as anteriores, de forma coerente, pelo que não é criada qualquer perturbação à interpretação por parte dos alunos”, justificou.

Nos critérios de correcção do IAVE é indicada como correcta a classificação de “Um dia veremos” como um “acto ilocutório compromissivo”. "Um erro", diz Sónia Rodrigues que explicita: “De uma maneira simples, podemos dizer que um acto ilocutório compromissivo tem como característica o facto de quem fala se comprometer a si próprio a fazer alguma coisa – pode ser uma promessa, um juramento, um compromisso e Lídia Jorge não se compromete seja com o que for.”

Na sua perspectiva (e na da Associação de Professores de Português) a resposta correcta seria “acto ilocutório assertivo”. Isto, explica Sónia Rodrigues, na medida em que “o locutor faz uma afirmação que exprime uma convicção e que representa um valor de verdade e de crença”. “É como se alguém dissesse: “Um dia os portugueses vão acordar” – naturalmente não está a comprometer-se a fazer com que isso aconteça, mas a manifestar a crença de que isso se vai verificar”, exemplificou. A questão, contudo, não é pacífica. Outro especialista ouvido pelo PÚBLICO, Adriano Duarte Rodrigues, defendeu que aquele acto ilocutório tanto pode ser classificado como assertivo como compromissivo.

Em declarações ao PÚBLICO, neste sábado, Lídia Jorge disse não estar a par da nova terminologia linguística, mas considerou que o IAVE deverá aceitar como válidas as duas respostas, na medida em que, pensa, “se pode aceitar que a frase implica também um compromisso e até um desejo”. “Português não é matemática, nem sempre há uma  resposta única”, comentou, lamentando que o texto “esteja a causar problemas quando está em causa o futuro de tantos milhares de alunos”.

Foram 74 mil, os que fizeram o exame. O IAVE insiste em que nem na prova nem nos critérios de correcção existem erros e, segundo o Ministério da Educação e Ciência, está "a preparar informações de natureza técnica sobre o assunto". As provas já estão nas mãos dos correctores. 

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