Coisas partidas

Romance provocador, magistralmente arquitectado, que retrata três décadas da vida contemporânea

Perder o nome. É isso o que mais assusta Mary. Depois de uma longa viagem de comboio sob céus carregados de nuvens negras, através de paisagens desconhecidas e de cinco fronteiras estaduais americanas, está agora sentada na borda da cama de um motel. Tem de lutar contra o desmazelo e o sono. Aquele será o primeiro dia do resto da sua vida. 15 de Setembro de 1972. Bobby (mais tarde, Nash), o amado, seguia outro caminho. Talvez nem se tornassem mais a ver. Estavam ambos em fuga depois de uma “acção radical” ter corrido mal. Houvera balas, morte, sangue nas roupas de uma cama. Eram os tempos dos protestos contra a Guerra do Vietname. Mas há que esquecer o passado. O passado nunca existiu. Ela agora chama-se Freya. Ou Caroline? Caroline Sherman. Um nome assim, modesto e humilde, um nome que não cheire a agitprop. Tem 22 anos e passou a ser natural de uma cidadezinha californiana que tem o nome da sua banda de música preferida. É a sua nova identidade. Há que esquecer tudo, pais e amigos. O passado não existe. Mary era mais uma dessas pessoas que acreditavam no absoluto, e o preço foi ter de passar à clandestinidade. “O peso de séculos de história contrabalançado pela acção de uma pessoa?” Talvez. Mas agora precisa de tinta para cabelo louro e de uma tesoura. Talvez engorde na sua nova vida, alimentada a pão e a manteiga de amendoim. E a sumo de pacote. Ainda não é o tempo para a melancólica contemplação do passado. “Sabia tudo sobre o desfazer de uma vida: afasta primeiro os teus. A tua família. O teu amado. Essa era a parte mais difícil. Depois, põe-te num lugar desconhecido, onde (como é que se dizia?) és totalmente desconhecido. Onde não possuis nada. Bom, então (esta era a parte mais estranha) apaga a tua história, cada pedacinho dela.” E cria outra.O refazer de uma vida, a reinvenção de uma história pessoal como mito de vontade de libertação, são os motes do romance Destruir a Prova (título emprestado pelo documentário sobre uma tournée de Bob Dylan no Reino Unido, realizado em 1966), da escritora norte-americana Dana Spiotta. Dos fervorosos protestos radicais contra a guerra até à descrença no mundo moderno, tão característica da cultura americana underground dos finais dos anos 90, Spiotta faz uma espécie de retrato vívido de três décadas da vida da América, socorrendo-se para isso dos pequenos absurdos da vida quotidiana das suas personagens. O idealismo, a música, a política, a vida dos outsiders, os subúrbios, a linguagem da cultura, o underground, a tecnologia, tudo o que parece manter o mundo coeso, como uma coisa estável e concentrada, surge ligado neste romance que foi finalista do National Book Award. Através de ligações de pessoas a memórias, de pessoas a acontecimentos, de acontecimentos a sentimentos, e tudo numa espécie de jogo secreto de causa-efeito (ou apenas de coincidências?), como numa carambola de bilhar numa mesa de onde não se consegue fugir para nenhum lado, o indivíduo parece estar preso num labirinto de fios invisíveis que de uma forma ou de outra desconhece, uma teia que mais não é do que o colectivo que o tempo nos oferece para ser vivido. E, talvez por isso, todas as personagens surgem como se fossem portadoras singulares de um pequeno fragmento da história. Como numa colecção de coisas partidas.Como foi já notado, é evidente a filiação literária de Spiotta em Don DeLillo, em especial nos romances em que ele tem querido tomar nota dos mais ímpares distúrbios da vida colectiva norte-americana — escrevendo sobre política e poder, terrorismo, espectáculo e fama, ou seja sobre os principais acontecimentos da História contemporânea — e fazendo como que uma espécie de estudo anatómico das suas obsessões, dissecando uma mistura estranha de medos primevos (nas suas variantes mais neuróticas) e de paranóias por vezes delirantes. Destruir a Prova faz também essa leitura microscópica da pós-modernidade.Dana Spiotta escreveu um romance provocador sobre luta e perda, com uma pitada de ironia sobre a rebelião e o protesto político, em que aproveita para ir explorando os pontos de contacto entre duas épocas marcantes da história contemporânea. Magistralmente arquitectado, e muitíssimo bem escrito, é um livro em que a autora percorre a História em sucessivas elipses, que dos anos 70 nos levam (para logo depois nos trazerem de volta) ao diário de Jason (escrito de 1998 a 2000), o filho da protagonista, no qual o adolescente procura descobrir, por aproximações, a vida secreta da mãe (como aquela que associa a mãe a um dos músicos dos Beach Boys) — fá-lo como se montasse um puzzle a que sabe que sempre faltarão muitas peças; ao mesmo tempo, este é também um romance sobre os efeitos corrosivos de um segredo mantido por mais de duas décadas; sobre desespero e solidão.

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