Elogio dos aventurosos banais

Depois de O Sonho do Celta e do conjunto de ensaios A Sociedade do Espectáculo, Mario Vargas Llosa regressa ao Peru e aos grandes temas da sua literatura

Mario Vargas Llosa (Arequipa, 1936) voltou ao Peru no seu mais recente romance. É a novidade menos nova do livro que os leitores portugueses podem descobrir quase em simultâneo com os falantes de língua castelhana. Portugal teve a primeira tradução mundial de O Herói Discreto, uma semana depois do mundo hispânico, o que faz com que a leitura seja quase limpa de preconceitos em relação a uma obra que, por ser de quem é, tem assegurada uma dimensão mundial. É assim sempre que o peruano escreve um romance, um acontecimento literário que o Nobel atribuído ao escritor em 2010 apenas veio reforçar. Temos um livro com acção no Peru, nas cidades onde Vargas Llosa cresceu e viveu, Piura e Lima, e que passaram a ser referência de qualquer atlas literário sobre a obra do escritor.

Mestre de bons arranques (de que é exemplo Conversa na Catedral, de 1969) Vargas Llosa coloca o leitor de imediato, às primeiras frases, no ambiente de O Herói Discreto. “Felícito Yanaqué, dono da empresa de transportes Narihualá, saiu de casa naquela manhã, como todos os dias de segunda a sábado, às sete e meia em ponto, depois de fazer meia hora de chi kung, tomar um duche frio e preparar o pequeno-almoço habitual: café com leite de cabra e torradas com manteiga e umas gotinhas de mel de chancaca. Vivia no centro de Piura, e na rua Arequipa já tinha despontado o bulício da cidade, os altos passeios estavam cheios de gente a ir para o escritório, para o mercado ou a levar as crianças à escola. Algumas beatas seguiam para a catedral para a missa das oito.” Serve o excerto, melhor do que qualquer observação, para situar no estilo inconfundível, pela limpeza e pela invulgar capacidade de tornar viva uma imagem literária, de Vargas Llosa. Desta vez, para o universo do pequeno empresário Felícito Yanaqué, alguém que não esquece a recomendação do pai (não deixes que te pisem), e que vai cruzar o seu caminho com o de Ismael Carrera, dono de uma seguradora em Lima, quando anuncia a decisão (ultrajante, para os filhos) de antecipar a reforma em três anos. Eles são os protagonistas de duas histórias, narradas separadamente, mas com vários pontos de contacto: um quotidiano marcado por um desenvolvimento económico e social que, a par com muitas ilusões, promoveu a pequena corrupção e a instalação de máfias mais ou menos poderosas.

Em diferentes lugares do Peru, as vidas de Felícito e Ismael vão tocar-se, num crescendo dramático marcado por dois acontecimentos: uma ameaça anónima à empresa e à vida de Felícito e o casamento tardio de Ismael, que Rigoberto, o funcionário dedicado e à beira da reforma, apadrinha, enfrentando a fúria dos filhos do velho. Depois de ter ficado viúvo, Ismael casa com a empregada, Armida, muitos anos mais nova, para deserdar a ambição doentia dos rapazes. E enquanto Ismael sai em lua-de-mel, Rigoberto, ente leituras de Doutor Fausto, as visões do filho, Fonchito, e as conversas quentes na cama com “dona Lucrecia”, prepara-se para uma batalha que não é a dele, mas na qual entra como se fosse. Por sua vez, Felícito, faz o que lhe manda tudo menos o bom-senso: publica no jornal local uma nota denunciando a ameaça dos chantagistas.

É este o centro de O Herói Discreto, um livro onde os protagonistas se revelam nas relações quotidianas com personagens-satélite tão ou mais ricas. Como Adelaida, a amiga de Felícito, que adivinha futuros e tem premonições de bem e de mal, ou Mabel, a rapariga que Felícito mantém, procurando nela um pouco de paixão e picante que a mulher, Gertrudis, não lhe consegue dar. E recuperamos o convívio com Lituma (o mesmo de Lituma nos Andes), o sargento da polícia de Piura que tenta descobrir quem e porquê ameaça Felícito.

Todas as personagens têm um sentido bem definido neste romance em que Vargas Llosa volta a jogar com as ferramentas que melhor manuseia: humor, atenção aos detalhes, espírito crítico face à sociedade e aos seus costumes, gosto pelos efeitos de um bom desafio a convenções sociais ou religiosas (como o casamento de Ismael com Armida), revisitação das origens e a forma como desse encontro entre passado e presente nascem algumas das mais iluminadas passagens literárias. Além das personagens e das paisagens, Llosa recupera ainda lugares, como a Casa Verde, o prostíbulo que inspirou um romance com o mesmo nome, em 1966.

A escolha do título, O Herói Discreto, denuncia a intenção de Llosa: fazer o elogio de existências mais ou menos banais, como a de Ismael, mas sobretudo a de Felícito, pelo modo como enfrentam adversidades impostas pela nova ordem das coisas. Até a alheada Gertrudis se apercebe da dimensão da ousadia de Felícito ao publicar uma nota ameaçando publicamente os chantagistas que o ameaçam a ele em surdina. “Então é verdade o que o padre disse no sermão. És um homem valente, Felícito. Que Nosso Senhor Cativo tenha compaixão de nós. Se sairmos desta, irei a Ayabaca rezar-lhe na sua festa, no próximo dia doze de outubro.” E o bairro branco de Miraflores, em Lima, pode conviver com o mais crioulo lugar de Piura, nascendo desse convívio as contradições onde Llosa gosta de se situar enquanto escritor. O bem e o mal, o popular e o erudito, que transpõe para a linguagem numa harmonia invejável, o sagrado e o profano capazes de conviver numa ordem muito própria em cada universo pessoal, a malícia do sexo e as bela cartadas da sedução. São traços comuns ao melhor da obra de Vargas Llosa, de que o político nunca está ausente.

Sem a exuberância narrativa, linguística e de estilo de Conversa na Catedral, ou o rasgo com que contou a vida do ditador Trujillo em A Festa do Chibo, este O Herói Discreto é um livro cheio de ironia que pretende ser também uma reflexão sobre a sociedade actual, mais precisamente a peruana, que copia, para o bem e para o mal, modelos mais globais, e onde o tradicional vai sobrevivendo num jogo com regras pouco claras, muitas vezes desarmante. Além de ser o regresso de Llosa ao Peru, é também a volta do escritor ao melhor do seu universo literário. É um livro com o selo de garantia Llosa. Ou seja, descansem os leitores, um porto muito seguro.

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