Sexo, velocidade e chupa-chupas

Uma cartografia cínica e patética da solidão numa metrópole contemporânea.

Dois clientes por ano bastam para que ele já não precise de se preocupar. Mas nem todos os contratos dão origem a narrativas, pois só os clientes que mostrem merecer podem renascer através das suas histórias, através daquele trabalho árduo que dá testemunho da empatia e do amor que o autor sente por eles. Quem assim trabalha é o narrador e protagonista de Tenho O Direito de Me Destruir, o romance de estreia do sul-coreano Kim Young-ha (n. 1968): um “conselheiro de suicídio”, contratado para ajudar os seus clientes a planearem e a executarem em segurança as suas próprias mortes. Nos intervalos entre trabalhos, ele viaja, visita museus (é um amante de pintura) e escreve sobre os seus clientes. Aspira a converter-se numa espécie de deus: “Só há duas maneiras de ser um deus: através da criação ou do assassínio.” Exerce ambas com mestria e cinismo: “A paixão de um artista não deveria criar paixão. A suprema virtude de um artista é ser distante e frio.”

Quando o encontramos, está a escrever um livro com as histórias de alguns clientes, gente sem o talento literário de Sylvia Plath mas que desenhou “o fim das suas vidas com a beleza com que ela o fez”. Esse livro, de que nos mostra algumas histórias, será em breve enviado a um editor. O autor assistirá, anónimo, à ressurreição das suas criações. Trabalha num escritório no sétimo andar de um edifício degradado no centro de Seul, onde à noite atende os telefonemas de quem leu o anúncio que publicou num jornal: “Escutamos os seus problemas.”

Publicado originalmente em 1996, este romance — que projectou o nome de Kim Young-ha na cena literária internacional — desenha com bastante cinismo uma espécie de cartografia da solidão numa sociedade urbana contemporânea, asiática mas já profundamente influenciada pela cultura ocidental. (Essa influência é talvez um dos aspectos mais inesperados do romance: são recorrentes referências como Gustav Klimt, Chet Baker, a Revolução Francesa, os Habsburgo, Ticiano, Rubens, Caravaggio.) Os tais clientes que encomendam uma morte assistida são seres solitários que se movem (e vivem) a grande velocidade numa grande metrópole como Seul ou Hong Kong, à procura de algo que parece sempre intangível. Uma das cenas que melhor descrevem esta busca pelo alívio da morte, é contada pela personagem Se-yeon quando recorda a infância e uma visita de estudo a uma igreja em que teve que se deitar num caixão para depois poder dizer o que sentiu: “Estava tão aconchegada que nem me apetecia sair de lá. Acho que uma freira me perguntou se eu tinha medo de ir para o Inferno. Não me parece que haja Inferno. Mas quero ir para o Árctico. Gostava de ficar aborrecida para sempre.”

Dois irmãos, Kim (que tem erecções quando conduz o seu “táxi-bala”) e C, fazem sexo com Se-yeon (também chamada Judite, em referência a um quadro de Klimt), que é viciada em chupa-chupas e que desaparece numa tempestade de neve nos arredores da cidade. Uma performer que nunca se deixa fotografar ou filmar porque tem medo da sua imagem e uma chinesa de Hong Kong que não pode beber água (apenas refrigerantes) são outras personagens apresentadas pelo cínico narrador para ilustrar o vazio. Estes clientes foram escolhidos por ele no mar de niilismo que inunda a cidade em que vive. Fecha-se na biblioteca pública lendo jornais e revistas também à procura de gente que dê sinais de problemas que possam ser resolvidos com a sua ajuda. “Só quero identificar os desejos mórbidos, aprisionados bem lá no fundo do inconsciente. Depois de libertado, este desejo começa a crescer.”

Tenho o Direito de Me Destruir pode inscrever-se num registo de narrativa existencialista (mas soa a mais do que isso), daí não serem tão estranhas as comparações que tem sido feitas com as obras de Camus ou de Sartre. 

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