A arte de dar a ler e saber esconder

O novo livro de Rita Ferro é um apaixonante exercício de fábula e auto-ficção

No dia em que Veneza Pode Esperar termina, 13 de Novembro de 2013, Rita Ferro resume assim, no Facebook, o seu primeiro diário, agora editado pela D. Quixote: “É a narrativa diária dos últimos meses da minha vida, sem artifícios literários, escrita no balanço de algumas perdas capitais e na perspectiva de um possível renascimento.”

Este modo de olhar para o passado recente e de admitir que possa constituir-se como matéria narrativa não é uma novidade no percurso da escritora. Em momentos como Desculpe lá, mãe! (1998), com Marta Gautier, Querida Menopausa (2005), com Helena Sacadura Cabral, ou Responde se és homem - epístolas aos incrédulos (2007), com Raul Miguel Rosado Fernandes, Rita Ferro havia já ensaiado filtrar a realidade de modo a poder constituir um posicionamento sobre a literatura. Veneza Pode Esperar tem, no entanto, um outro interlocutor: já não alguém que lhe responde, como nos exemplos anteriores, mas alguém que se pergunta como está a ser visto. De certo modo, este diário aproxima-se, num exercício narrativo que é construção do leitor e nada terá que ver com a intenção da autora, do modo como Rita Ferro sempre olhou para as mulheres através das suas personagens. “Sou despachada e o meu discurso é objectivo. É a tal máscara que uso, não para disfarçar, mas por respeito a quem me atura ou lê”, escreve a 11 de Junho. Vinte anos depois de Uma Mulher não Chora, a autora ouve a sua própria personagem, que falava assim dos escritores: “Suspeitarão os escritores que uma das valências da arte é esta de nos conduzirem a assuntos que nada têm que ver com a sua prosa? Saberão eles que, entre todos os serviços que nos prestam, esse é talvez dos melhores? Que ao nos maçarem tantas vezes com a sua inteligência retocada nos dão asas para fugir?”

Então, sendo um diário, Veneza Pode Esperar exerce no leitor uma fascinante e intrigante viragem estilística, introduzindo uma certa aura de auto-ficção, que é, afinal a distância que vai entre o que se passa e o que se deixa escrito. Porque se apresenta como diário, imagina-se uma exposição. Mas a ordem das entradas não pede desculpas pela sua organização, nem está preocupada em ser exaustiva ou sequer em construir uma narrativa. Ou seja, renuncia à lógica da exposição, não cede à curiosidade mórbida e voyeurística e chama a si o controlo sobre a percepção que se pode ter de um escritor que assume estar a escrever um diário. Na verdade, o diálogo proposto pela autora surpreende com detalhes e informações que nos indicam que não está ali a informação toda. Percebe-se, sobretudo, como caminha deliciada e perigosamente para essa ideia de auto-ficção, reinventando ou aproveitando-se do jogo de exposição presciente e de voyeurismo consentido que as redes sociais alimentam (e onde Rita Ferro se expõe). Por se esconder tão bem nas entrelinhas, é um livro que está sempre a escapar-nos. Mesmo que possa ser um exercício fútil de leitura, podemos encontrar (ou imaginar) pontes entre os seus diferentes livros. Como esta: na página 79 de Veneza Pode Esperar, escreve-se: “Os portugueses não guardam ódio no coração (...). Não é por passividade, cobardia ou medo da licitude (...). Que mania esta de amesquinhar a toda a hora as nossas virtudes, pervertendo-as como falhas de carácter!”; ora no seu primeiro romance, O Nó na Garganta, publicado há 25 anos, Rita Ferro escrevia: “Também ela [Joana] se exasperava com a passividade dos portugueses, muito embora sabendo que passividade podia ser sinónimo de bonomia, atitude afinal tão próxima da bondade!”.

À desarmante narrativa que é proposta apetece assim chamar fábula, muito porque a autora não se coíbe, em ácidos exercícios de auto-análise, de interpretar as consequências de decisões que nem sempre lhe couberam. Não falta, inclusive, um morto que lhe surge sem rosto, num sonho, e que a filha interpretará, consciente e convenientemente, como sendo o da própria autora. Neste acto de observar analisando - que já havia mostrado em Os Cromos de Rita Ferro (2003) -, a autora constrói um quotidiano que se deixa atravessar por um contexto social, político e filosófico e a partir do qual é possível intuir, a posteriori, uma moral. Daí que este relato possa constituir-se como fábula, e como superação de uma narrativa exibicionista: ele transforma em lições a banalidade dos dias. Quando lhe perguntam como viveu a sua vida “destituída de um sentido: o da luta”, Rita Ferro, provavelmente rasgando as diferentes imagens que sobre ela se compõem (e contradizem), responde, desassombrada: “Dizem que não é possível a uma mulher criar bem três filhos, sobreviver a três divórcios, reconstruir-se tantas vezes mantendo a independência financeira e dar passos maiores do que as pernas sem esse nervo. Respondo que para o fazer não precisei de lutar, pois tudo isso obedece a uma vocação que se cumpre não com esforços sobrenaturais mas por reflexo.”

Assim, episódios como o encontro de escritores na Feira do Livro, a resolução de dívidas decorrentes de impostos, a venda da casa e o desapego à memória material, a tentativa de desenhar uma biografia do avô, os jantares sociais, os problemas do envelhecimento, a relação prática com o sexo ou o esforço para que a juventude se perpetue surgem aqui como exemplos de recusa de uma construção estereotipada por parte de uma autora que abre o seu íntimo e se deixa invadir por uma curiosidade quase perversa sobre si mesma.

Ao invés da exposição, a construção. Ao invés da mentira, a reflexão. Ao invés do diálogo, a auto-análise. E, no entanto, ao fim de oito meses e 236 páginas, não ficamos a saber mais sobre Rita Ferro. O truque de Veneza Pode Esperar está no modo como usa a retórica da construção diarística para pensar um modelo narrativo que usa o quotidiano para o inventar. Aquilo que lhe havia sido apontado nos seus romances, lidas as personagens como extensões da própria autora, ressurge aqui. Há um pormenor delicioso que liga a Joana de O Nó da Garganta (1990) à Rita Ferro de Veneza Pode Esperar: um gato, figura enigmática que serve, num caso e noutro, como agente activo na narrativa e como primeiro interlocutor de ambas. Não é um pormenor. É o primeiro leitor.

 

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