Work in progress

Uma exposição sobre a liberdade e sobre o modo como a arte é sempre para o outro

Muitas metáforas seriam convenientes ao modo como o artista vietnamita Danh Võ (Bà Ria, Vietname, 1975) decidiu ocupar o espaço da Culturgest no Porto. Essa ocupação caracteriza-se por criar uma espécie de jogo com as expectativas dos visitantes acerca do que pode ser uma exposição de arte e, mais especificamente, uma exposição de escultura. Jogo não significa malogro, ou tentativa de charada para propositadamente deixar o espectador sem chão. Antes significa, aqui, um modo especial de convocar a sensibilidade, a inteligência, a imaginação e o corpo humanos como condições de possibilidade do trabalho artístico.

Até 14 de Abril, entrar na galeria da Culturgest no Porto significa chegar a uma aparente confusão: não se conseguem estabelecer distinções entre o que é a exposição e o que são materiais de construção esquecidos na sala. Esta indistinção entre obra-feita-pelo-artista e elemento construtivo não é uma retórica vazia para retorcer e gratuitamente dificultar a experiência da arte; o seu sentido é mostrar o modo como todas as coisas, todos os factos, todos os seres, estão ao mesmo nível, e que o valor não reside nas coisas elas mesmas, numa espécie de virtuosismo essencial que umas coisas têm e outras não, mas sim na sua capacidade de fazerem afirmações e interrogações e de se integrarem na vida. Se no primeiro piso da galeria é o excesso de objectos e elementos visuais que domina, na cave reinam o silêncio e o vazio. Mas estes não são inexpressivos: servem para provocar uma outra espécie de confronto com a contenção.

Formalmente, o trabalho deste artista detém uma sabedoria espacial habitualmente associada à escultura - Danh Võ faz uma espécie de síntese dos gestos da escultura minimalista e da arte conceptual. O modo como consegue perceber o espaço, ocupá-lo e dialogar com ele inscreve-o no campo da tradição da escultura. Mas a esta filiação deve acrescentar-se que o seu trabalho não se desenvolve em diálogo com a história da arte, antes com um conjunto de problemas e inquietações políticos, sociais, culturais. Não se trata de uma arte panfletária que tente ilustrar ou fazer propaganda de um conjunto de ideias e/ou ideologia, mas as ferramentas artísticas servem a este artista para falar do seu mundo e esse mundo é o dos crimes políticos, das injustiças sociais, das ilusões e das mentiras. O cruzamento entre a História universal, a História do Vietname - da sua ocupação, dos campos de internamento, das fugas e das ilusões da liberdade - e a sua narrativa pessoal caracterizam o trabalho de Danh Võ. Não que o artista fale em nome próprio ou tente criar uma narrativa pessoal, mas no sentido em que a sua história serve como elemento de elucidação de uma estrutura universal de acção. E este movimento do pessoal para o colectivo, do doméstico para o mundo, é permanente na obra de Võ, constituindo a sua poética e o seu encantamento.

A liberdade, as suas gramáticas e as suas possibilidades estão no centro da exposição que o artista desenvolveu especificamente para este espaço no Porto. À Culturgest chegaram fragmentos da Estátua da Liberdade a que o artista chamou We the people: feita à escala real, no mesmo material e com os mesmos processos da que se encontra à entrada de Nova Iorque, a “estátua” de Võ foi no entanto produzida na China. Este ideia de o grande símbolo da liberdade, da igualdade, e do sonho americano ser “made in China” desestabiliza as crenças habituais do Ocidente. Uma espécie de estranheza a que se junta a constatação de que a gigantesca Estátua da Liberdade, que era a primeira coisa que os emigrantes viam ao chegar à América, ser constituída por finas chapas de cobre de 11 milímetros: uma fragilidade nada adequada à sua função iconográfica no imaginário e na memória colectivos.

Com um percurso recente, mas já totalmente integrado no difícil e importante circuito da arte mundial - por exemplo: ganhou o importante prémio Hugo Boss, tem agendadas exposições individuais no museu Guggenheim de Nova Iorque, na poderosa galeria Marion Goodman (que representa artistas como Gerhard Richter, James Coleman, Dan Graham, Tacita Dean ou Jeff Wall, entre muitos outros) e no Museu de Arte Moderna de Paris -, Danh Võ tem uma obra que exige trabalho, envolvimento e, sobretudo, que cada um a complete, no sentido em que o artista não propõe objectos finalizados, prontos a serem devorados pelo apetite voraz do consumo artístico, mas um continuo work in progress que exige ao espectador a finalização, a conclusão e a atribuição do sentido. Trata-se, portanto, de sublinhar que as obras de arte são seres de alteridade, ou seja, que não vivem no isolamento, mas exigem a presença do outro, alimentando-se das trocas, dos diálogos e das relações que com ele eventualmente estabelecem.

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