Prova de aferição

O sensual primeiro romance da neozelandesa Eleanor Catton, escrito aos 22 anos, é um livro escrito com o coração na boca.

É uma estreia desabrida. Não porque os temas abordados em "O Ensaio" sejam originais - não faltam romances sobre a passagem da adolescência à idade adulta e os seus traumas, sonhos, desilusões, ou tragédias -, mas porque Eleanor Catton consegue armar à nossa frente um castelo de cartas de equilíbrio precário para o qual somos convocados a olhar rapidamente antes que tudo se desmorone. E como não sabemos o momento exacto em que isso vai acontecer, ficamos presos a olhá-lo sem nos conseguirmos afastar.

O baralho de cartas, com a sua simbologia minimalista dos naipes, as suas duas cores, a sua aparente definição de géneros, a simbologia das armas de cada valete, dama ou rei, ou a ausência delas, é a grande metáfora que atravessa o primeiro romance de Eleanor Catton. Se a vida é um jogo, quanto mais depressa percebermos as suas regras melhor: "Se apanharem uma carta com uma figura, a vossa vida sexual talvez se torne um pouco mais complicada. Em geral uma rainha de qualquer naipe transforma-vos em travestis, um rei dá-vos uma tendência sadista e um valete uma tendência masoquista. Mas há excepções."

Ao princípio existem dois naipes: há uma escola de arte dramática e uma academia de jazz que partilham um pátio onde também há uma gingko biloba. Na escola de jazz, Vitória, menor de idade, envolve-se sexualmente com um dos professores deixando atrás de si um rasto de mal-estar e de terror entre as alunas e uma herança difícil para Isolde, a sua irmã mais nova. Na escola de teatro, os alunos como Stanley descobrem a caixa de Pandora que pode ser começar a aprender a representar: "- Lembrem-se de que quem for suficientemente inteligente para vos libertar é suficientemente inteligente para vos escravizar."

Os dois universos juntam-se de uma forma perigosa quando os alunos de teatro escolhem, no exercício final, contar em palco a história de Vitória e do seu professor, aproximando as fronteiras entre realidade e representação. O que aconteceu confronta-se com o que está a acontecer. Será a fantasia uma realidade? Ou o contrário? O modo como estas duas camadas se foram misturando sem que nos déssemos conta é um dos grandes achados deste romance.

Outro é a forma como as tensões sexuais entre os jovens e os professores vão sendo geridas. Para além do mote do abuso sexual de menores, que é o fio que percorre toda a narrativa, há um mundo subterrâneo e cruel que se vai revelando. Tem origem do lado de lá do espelho e expõe-se em figuras-tipo aqui denominadas "O professor de representação", "O professor de movimento" ou "O professor de voz". Demonstram à saciedade, pelo sadismo de alguns exercícios, que a parte nas nossas vidas que é de descoberta sexual nunca é um capítulo fechado. Aqui estes professores olham para o que já foram sem deixarem de manipular as marionetas que lhes passam pelas mãos. Deixaram-se tomar por aquela nostalgia que o enorme Balzac um dia definiu como a doença do corpo que ataca o espírito.

A mais bem desenhada por Eleanor Catton é a professora de saxofone. Eis como se apresenta um instrumento a uma aluna: " O saxofone fala uma língua marginal, a linguagem da melancolia extenuada da meia-luz, suja, sexy, suada e dura. É língua dos canalhas e das prostitutas. (...) Os saxofonistas são admirados porque são perigosos, porque exploram um lado mais sombrio, mais sinistro, de si próprios. Na tua execução, Bridget, não vejo nada de sujo, de sexy, de suado ou de duro. Tudo o que vejo é rosa e branco, limpo e cintilante, calmo e desinfectado como um caniche numa exposição."

Ao longo de "O Ensaio", esta professora vai sendo uma espécie de pivô principal da narrativa sobretudo porque por ela passam, através de algumas confissões que lhe chegam às aulas, os receios em definir uma identidade sexual. A professora lésbica, mas que só se assume perante o leitor nos apartes em que com ele partilha diálogos imaginados com uma suposta amante de nome Patsy, é um achado de subtileza e de domínio sobre o leitor.

"O Ensaio" é um romance bastante bem construído sobre como a descoberta que pode significar a chegada da arte à vida de qualquer pessoa se pode ir misturando com a definição dos códigos do desejo que se exprimem através da sedução e da revelação da intimidade. Um livro escrito com o coração na boca e que escangalha estereótipos. Uns atrás dos outros. Sensual. Intrínseca e abençoadamente desorganizado.

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