Coração de ferro

Um exercício de reflexão, em jeito de romance, sobre a relação entre a verdade histórica e a sua representação literária

O francês Laurent Binet (n. 1972), em "HHhH - Operação Antropóide" - prémio Goncourt para primeiro romance 2010 - narra, de maneira bastante original, o encadeamento dos factos que acabariam por matar de septicemia, na Primavera de 1942, Reinhard Heydrich, o braço direito de Himmler e chefe dos Serviços Secretos das SS e da Gestapo. A originalidade está em contar a verdade histórica ao mesmo tempo que vai invocando essa impossibilidade ou, pelo menos, duvidando de que seja possível contar uma história verdadeira com as ferramentas da ficção, resultado esse que será sempre uma "alquimia infame".

Para Binet, este romance pretende ser uma homenagem aos "autores de um dos maiores actos de resistência da Segunda Guerra Mundial", Josef Gabcík e Jan Kubiš, dois pára-quedistas checos enviados de Londres para matar Reinhard Heydrich, aquele a quem Hitler chamava "o homem com coração de ferro", e que era também conhecido - entre vários outros apodos - como "o homem mais perigoso do III Reich", o ideólogo da "Solução Final" na conferência de Wansee, a 20 de Janeiro de 1942.

Mas como contar um facto histórico sem uma camada de idealização? Sem a subjectividade que a literatura implica? O problema coloca-se logo no início da narração quando o autor começa por invocar a imagem de Josef Gabcík deitado no seu quarto a ouvir o chiar do eléctrico lá fora, na rua: "não estou certo de estar a prestar-lhe homenagem. Estou a reduzir este homem à categoria de vulgar personagem, e os seus actos a literatura." Ao mesmo tempo, Binet vai-nos introduzindo, também aos poucos, na personagem de Heydrich, "a pior criatura jamais forjada pelo fogo escaldante dos infernos", contando-nos o seu passado e justificando o acrónimo que titula o romance, "HHhH": "Himmlers Hirn hei?t Heydrich" ("o cérebro de Himmler chama-se Heydrich"); mas deixando sempre à vista os alinhavos e pespontos do processo criativo da escrita ("esta cena não é lá muito útil, e além disso foi praticamente inventada por mim, acho que a vou cortar"): introduzindo na narração a sua (suposta) vida privada, a obsessão em que esta história se tornou desde que o seu pai lha contou, o muito material histórico que foi acumulando ao longo dos anos ("era preferível não saber muitos pormenores; assim não sou tentado a contá-los"), fazendo reparos e correcções ao que já ficou escrito, informando o leitor da natureza do texto que escreve ("todos os diálogos que eu inventar serão tratados como cenas de teatro"), e reflectindo sobre como a escrita do livro foi afectando a sua vida pessoal.Apesar das dúvidas, Binet quer levar a história até ao fim, pois tem que se ver livre dela, e isso percebe-se. Como quem estende devagar um mapa da Europa Central sobre uma mesa de um qualquer quartel-general, vai explanando o Mal que Reinhard Heydrich representa, pontuando as cidades, descrevendo os movimentos, preenchendo hiatos históricos ao mesmo tempo que somos informados de que o que acaba de ser contado talvez não corresponda à realidade: temos assim notícias da infância do "carrasco de Praga" (como também era conhecido), da expulsão da Marinha, do casamento com uma aristocrata, da maneira quase idiota de como entrou ao serviço de Himmler, das dúvidas sobre se seria ou não descendente de judeus (o que não se confirmou), da sua ascensão no regime nazi deixando a cada passo um monte de cadáveres atrás de si. Mas Binet não quer encontrar uma explicação para o Mal, e é nisso claro, nem tão-pouco para o acto heróico dos sacrificados pára-quedistas que acabaram na cripta de uma igreja, depois de terem resistido durante 8 horas ao cerco de 800 soldados das SS. Laurent Binet quer apenas contar a história sem lhe tornar impura a veracidade, e usando o menos possível a "vulgar verosimilhança". E é essa vontade que leva o leitor, como se de um funil se tratasse, para o âmago da natureza do terror e do heróico. O espelho da realidade histórica deixa-se assim penetrar.

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