O homem que não era ele

Uma escrita seca, não isenta de melancolia, ilumina os matizes da sombra que se abateu sobre o Reich alemão

Houve um tempo em que as pessoas cultas faziam questão de ler (e de dizer que liam) romances policiais. Dando como adquirido que Wilkie Collins fixou o género quando publicou "The Moonstone" (1868), muita coisa mudou desde então. Mas a genealogia não engana: Arthur Conan Doyle, G. K. Chesterton, Raymond Chandler, Agatha Christie, Dashiell Hammett, Horace McCoy, Georges Simenon, James Hadley Chase, P. D. James, Patricia Highsmith, Andrea Camilleri, Ed McBain, Ruth Rendell, James Lee Burke, Dan Kavanagh, James Ellroy, etc. Quem não conhece Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Jules Maigret, Adam Dalgliesh, Tom Ripley, Dave Robicheaux e outros heróis que o cinema e a televisão tornaram familiares?O escocês Philip Kerr (n. 1956), celebrado autor de livros infantis e colunista da "New Statesman", criou Bernie Gunther. Bernie Gunther dá o nome a uma série que vai em sete títulos, anunciando-se o oitavo para o ano que vem. Três foram publicados entre 1989 e 1991, os outros quatro entre 2006 e 2010. "O Projecto Janus" (2006) abre a fase tardia, podendo e devendo ser lido como começo de nova sequência.

Bernie Gunther é o detective privado que conhecemos desde "March Violets" (1989). O prólogo situa-nos na Berlim de Setembro de 1937, quando Hitler, invocando a necessidade de espaço vital, "exigia colónias estrangeiras para a Alemanha." Seca mas não isenta de melancolia, a escrita de Kerr ilumina os matizes da sombra que se abateu sobre o Reich. Contudo, o essencial da intriga (apoiada em factos reais) tem enfoque no pós-guerra, quando Bernie, antigo proprietário de um hotel em Dachau, se muda de Berlim para Munique. É lá que Britta Warzok lhe pede que descubra o rasto de Friedrich Warzok, o criminoso de guerra com quem está casada. É uma armadilha, mas Bernie não sabe, e aceita a incumbência (as suas diligências permitem um "tour d'horizon" às sequelas do Holocausto). À sua volta o terreno está todo minado. As brigadas Nakam, fundadas em 1945 por Abba Kovner, responsáveis pelo assassinato de milhares de criminosos nazis, actuam por conta e risco: "Não confiam nos alemães nem nos Aliados para fazerem o trabalho." E, naqueles anos, a Cruz Vermelha Alemã era conhecida por ser "muito competente a encontrar pessoas desaparecidas [mas também] em conseguir o resultado contrário." Baralhando tudo, gente conspícua - judeus, Wiesenthal incluído, agentes da CIA, etc. - recorre sem pudor à colaboração de antigos militares SS com responsabilidades na Solução Final. Nada parece o que é no incessante jogo de espelhos do ajuste de contas: ingleses, americanos, russos, alemães e judeus puxando cada qual para seu lado.

Bernie é apanhado na voragem. Logo Bernie, que até tinha trabalhado (em 1937) para o Haganah, espiando Adolf Eichmann e Herbert Hagen quando estes visitaram a Palestina. Mas os judeus queriam fazê-lo passar por Eric Gruen, um criminoso de guerra cujos conhecimentos na investigação da vacina contra a malária interessavam aos americanos. Se Bernie fosse executado em seu lugar, as partes ficavam satisfeitas. Bem vistas as coisas, o tempo não estava para pruridos de consciência. Não haviam sido as SS um viveiro de experiências bem sucedidas? Por exemplo, quando organizaram o esquadrão muçulmano de Haj Amin al-Husseini, o Grande Mufti de Jerusalém, responsável pelo extermínio de centenas de milhares de judeus na Bósnia. E outros que tais. A propósito, Kerr lembra que Haj Amin al-Husseini era parente próximo de Yasser Arafat e que, ainda hoje, "muitos partidos políticos árabes, designadamente o Hezbollah, têm-se identificado com os nazis e adoptado símbolos de propaganda nazi."

Como diz Eichmann na popa do navio, e Bernie concorda, "Lamentar não adianta nada. Lamentar é inútil. Lamentar é para crianças pequenas." A ver vamos se o próximo volume explica o que aconteceu a Gruen quando deu com os mosquitos à solta.

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