Nem tudo o que acontece

O mundo é tudo o que acontece, mas nem tudo o que acontece merece ficar escrito

"Genuíno. Fui ver ao dicionário. Um dicionário de 1881. Nos actuais pode já não aparecer a palavra. As palavras desaparecem com os mundos. Genuíno. Adjectivo. Puro, próprio, natural, sem alteração ou mistura. As pessoas também são as palavras que usam." Isto escreve Pedro Paixão na página 202 do seu mais recente livro, "O Mundo é Tudo o que Acontece". Esta passagem, juntamente com o título, resume o beco criativo em que Paixão se meteu nos últimos anos. É verdade que ele sempre cultivou o genuíno, ou seja, o sincero e o espontâneo; mas isso, que a princípio fazia o interesse e a diferença da sua literatura, tornou-se álibi para uma espécie de fuga à literatura.

Porque quando chegamos a um livro como "O Mundo é Tudo o que Acontece", uma mescla de histórias, pequenos ensaios e anotações, já não encontramos nada que seja literário mas apenas a tal sensação do genuíno, daquilo que não tem alteração ou mistura. Só que a literatura faz-se com palavras, e as palavras de Paixão perderam força, perderam secura, perderam o norte. Claro que ele ainda escreve com uma correcção intocável, mas agora também descamba: "Tenho na garganta uma magnólia a florescer, nadam minúsculos peixes azuis por debaixo das minhas unhas, tenho o sexo transformado em ramos de açúcar" (pág. 35). Isto, que é péssimo, aparece dezenas de vezes, espelhando em má poesia a sofreguidão do desejo.

O mundo é tudo o que acontece? É verdade, mas nem tudo o que acontece merece ficar escrito. O jogo perigoso com a autobiografia, que era motivo de fascínio no Paixão da década de 1990, cai agora num confessionalismo que não interessa a ninguém: detalhes de um acidente, uma operação, um divórcio, úteis talvez em termos terapêuticos mas textualmente inúteis. O escritor confessa que não tem imaginação, mas isso não justifica certos exageros. Há passagens que parecem copiadas de cartas mandadas a alguém, certamente fortíssimas em contexto pessoal, mas estéreis nesta colectânea de tentativas. E ao vigésimo primeiro livro, o mínimo que se pode dizer é que sentimos um certo cansaço com a enésima declinação de um restrito número de tópicos (Auschwitz, Wittgenstein, os ansiolíticos, os restaurantes da moda, o desdém pela democracia, as evocações equívocas da amizade masculina). É verdade que todos os autores têm um pequeno universo, mas há uma diferença entre a evolução e a simples reiteração: veja-se como falha o texto que tinha tudo para ser bom, o de Beckett em Cascais em 1969. Ou como o famoso episódio do encontro entre Joyce e Proust não produz uma única reflexão relevante.

Sobram as histórias de mulheres conhecidas e desconhecidas, amadas e fodidas. Essa oscilação entre o sublime e o animal tem uma dinâmica curiosa, mas Paixão já não tem nada a acrescentar ao tema mil vezes repetido do vício que é perseguir a beleza que se desfaz. Pelo que os textos são uma galeria de mulheres de lábios desenhados, nariz arrebitado, vestidos sem mangas, fotografadas em várias capitais, lascivas, insensatas, adoráveis. Às vezes são esboços de poucas linhas, outras vezes prolongam-se em narrativas sobre miúdas rebeldes ou troféus (há mesmo um incomodativo texto sobre uma governanta, aparente modelo da mulher ideal).

Nada disto tem a frescura daquelas narrativas enxutas e admiráveis que vão de "A Noiva Judia" (1992) a "Amor Portátil" (1999). O Paixão que conta está nos oito livros reunidos em "Do Mal o Menos" (2000). Depois disso, foi-se dissipando em romances fracassados e numa deslocada angústia wittgensteiniana sobre o que dizer e o que manter em silêncio.

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