Ouviu-se Jim Carey gritar em Cannes: "Vou ser paneleiro, vou ser paneleiro"

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"I love you Philip Morris", de Glenn Ficarra e John Requa

Um mentiroso compulsivo, um escroque, um psicopata emocional, Jim Carrey só joga com verdade no seu amor por Ewan McGregor. Com a comédia "I love you Philip Morris", Cannes aplaudiu um actor/autor na Quinzena dos Realizadores.

A caminho do aeroporto de Nice para continuar a promoção mundial de "A Christmas Carol", adaptação para toda a família, em 3D e com a técnica de animação de "motion capture", de um clássico de Charles Dickens, Jim Carrey parou por uns minutos no Palais Stephanie Théatre Croisette. Onde foi ouvido a gritar, no ecrã, "Vou ser paneleiro, vou ser paneleiro!".

Antes de tamanha determinação, já tinha visto pilinhas nas nuvens. E deixara-se dos agradecimentos a Deus, de joelhos com a mulher à beira da cama, por não ter havido problemas com o filtro da máquina de café. Deixou-se disso, do coito conjugal heterossexual para marcar o ritmo do casal ideal americano, e passou a cavalgar, furiosamente, determinadamente, a todo o tempo, os machos. Fez o seu "outing". Foi uma cena assim de "I love you Philip Morris", logo nos primeiros minutos do filme, em que Carey investe contra um "bear" que está de joelhos, que fez os distribuidores americanos engasgarem-se com receios e dúvidas. De tal forma que só no fim-de-semana anterior ao início do Festival de Cannes é que esta primeira-obra dos argumentistas John Requa e Glenn Ficara encontrou quem a vai distribuir no mercado americano, apesar de ter sido, há meses, uma das sensações do Festival de Sundance. Foi também uma da sensações da Quinzena dos Realizadores de Cannes, "habitat" para autores, mas que hoje se fez palco para receber de pé um actor, Jim Carrey. Só por uns minutos, antes de ele continuar o périplo de promoção de "A Christmas Carol", a animação que Robert Zemeckis fez para a Disney. Ou seja: antes de continuar a fazer de "pedaço de queijo numa ratoeira para ratos" (foi assim que definiu o jogo que escolheu jogar, a indústria), Carey apresentou ao público de Cannes um filme que lhe é caro. Para o qual estava disposto a entrar mesmo que não fosse pago. Só duas vezes, antes de "I love you Philip Morris", sentiu isso perante um argumento: foi com "Homem na Lua" e com "Eternal Sunshine of the Spotless Mind".

Carey interpreta Steven Russell, o tal que, em miúdo, já via pilinhas nas nuvens mas que apesar disso se casou, desesperou com os filtros da máquina de café e teve uma filha. Até que um desastre lhe ofereceu um momento de epifania: ser verdadeiro consigo próprio. "Vou ser paneleiro", gritou Steven, e partiu para a Florida onde fez o seu "outing" e à sua maneira prosseguiu o sonho americano. Engatando Rodrigo Santoro.

Mas Steven Russell - é uma história verídica - nunca conseguiu dizer a verdade. Mentiu sempre, não por tudo e por nada, mas "pela sua demente necessidade de aceitação" (Jim Carrey "dixit"). Foi um escroque, enganou meio mundo, deu golpes em bancos, em empresas (também porque ser "gay sai muito caro"). Uma espécie de Rei da Evasão, como o Leonardo DiCaprio de "Apanha-me se Puderes". E um dia foi preso.

Na prisão conheceu Philip Morris. Como é que poderíamos descrever Philip Morris? Tem, no filme, o rosto e o corpo de Ewan McGregor, é uma espécie de "southern belle" das peças de Tennessee Williams em corpo masculino, "always depended on the kindness of strangers". E Steven dedicou-se a protegê-lo, de verdade. "I love you Philip Morris" é a história desse "amour fou", na prisão e fora da prisão, contra tudo e todos.

Steven é um psicopata das emoções, um mentiroso incontinente, tal como outras personagens interpretadas por Carey- lembramo-nos de "Cable Guy", mas é só escolher. É um homem com dificuldade em dar a si próprio e aos outros provas da sua existência, como em "Homem na Lua" (talvez o seu papel máximo seja nesse filme de Milos Forman). Fez sentido, então, que a Quinzena dos Realizadores tenha recebido este actor: Carey, com o seu corpo, acaba por ser "autor" dos filmes em que participa. Sem desprimor para o trabalho dos argumentistas John Requa e Glenn Ficara (foram os argumentistas do politicamente incorrecto "Bad Santa", de Terry Zwigoff). Estreiam-se na realização e são impecáveis a evitar armadilhas, como a tentação de suavizar os riscos figurativos e temáticos do argumento, o que poderia acontecer se se refugiassem, por exemplo, no registo clownesco de Carey. Só este, disseram eles, podia liderar um projecto destes. Mas Carey podia também devorar um argumento destes. Mas em nenhum momento do filme a relação entre as duas personagens, por exemplo, é escamoteada em favor do virtuosismo do actor.

E um dia apanharam definitivamente Steven Russell. O Estado do Texas, quando governado por George W. Bush, sentiu-de de tal forma lesado que investiu mundos e fundos para condená-lo a prisão perpétua. Steven Russell passa, hoje, 23 das 24 horas do dia na sua cela. Só tem uma hora para descontrair no exterior. E o verdadeiro Philip Morris? Tem um "cameo" em "I love you Philip Morris", dizem as notas de produção do filme, uma figuração especial. Quem é ele? Apanhem-no se puderem...

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