Sai Pessoa, entra Almada

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Os b-boys de Momentum Crewnum colorido e lúdico momento final, dançando ao som de Bella ciao, uma melodia popular italiana que serviu de canção de protesto em ambas as guerras mundiais JOÃO TUNA

No cenário de Turismo Infinito, concebido para figurar as subtis sinapses de Fernando Pessoa, Ricardo Pais põe agora a dançar a exuberante corporalidade de Almada Negreiros, o vanguardista-mor da tripulação de Orpheu

O mais recente espectáculo de Ricardo Pais, al mada nada, que se estreia quarta-feira à noite no Teatro Nacional S. João (TNSJ) — com início às 23h, a sessão terminará já em pleno dia mundial do teatro —, encena um conjunto de escritos de Almada Negreiros, mas adopta como eixo central o texto Saltimbancos, originalmente publicado no número único da revista Portugal Futurista, em 1917.

Num espectáculo que quis correr vários riscos, da reutilização do cenário que o arquitecto Manuel Aires Mateus concebeu para Turismo Infinito à presença no elenco de um grupo de dança urbana, a escolha deste texto não foi o menos ousado. É que antes mesmo de colocar problemas de encenação, Saltimbancos é um texto que desafia a própria leitura: parece começar a meio de uma frase, dispensa toda a pontuação e não se rege por uma sintaxe convencional. Pretender dizer o que ele diz sem mimar o seu ininterrupto fluxo verbal é, até certo ponto, um exercício conjectural.

Saltimbancos é também um texto de uma brutal explicitude sexual, seja a descrever, no picadeiro de um quartel, a cobrição de uma égua por sucessivos cavalos, cujos membros erectos são guiados até ao seu destino por um soldado de “luva até meio do braço”, seja a espreitar uma rapariga de aldeia, abandonada pelo seu magala, a “roçar as coxas uma contra a outra (…) nos lençóis de linho”, masturbando-se ao ritmo binário das marchas militares — “sem dormir em passo acelerado marche 1 2 1 2 1 2 1 2 (…)” —, seja ainda a descrever o júbilo da populaça que assiste a um indigente circo cigano quando a pequena Zora, de 12 anos, ao fazer a ponte, rompe inadvertidamente o seu “maillot vermelho” e descobre “o sexo inocente num buço triangular”. Pensar que Almada escreveu este texto aos 23 anos, e no país que Portugal era em 1917, só pode mesmo espantar-nos.

Uma denúncia “certeira”

Por uma “sorte inexplicável”, contará mais tarde Fernando Pessoa, Portugal Futurista escapou à censura prévia. Com o país em pleno (e desastroso) esforço de guerra — al mada nada tem elementos visuais e auditivos que apontam para o contexto da Primeira Guerra Mundial, dos uniformes dos soldados ao ruído e fumo do comboio a vapor, mas não insiste no tópico —, os censores da I República deixaram passar a provocação com que Almada Negreiros fechava, nessa mesma publicação, o seu Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX: “O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, portugueses, só vos faltam as qualidades.”

Uma boutade divertida, mas muito menos subversiva, na realidade, do que a prosa alucinada de Saltimbancos, com os seus instantâneos de um triste quartel de província e da acéfala instrução militar ministrada aos soldados portugueses destinados às mortíferas trincheiras da Flandres. A revista acabou mesmo por ser apreendida pela polícia, já depois de chegar às livrarias, porque chegou às autoridades uma denúncia contra a “linguagem despejada” de Saltimbancos. O anónimo queixoso de 1917 seria conservador, mas não era parvo.

Não tivesse este espectáculo outros méritos, e tem bastantes, já não seria pouca coisa recuperar este texto que não parece ter precedentes ou afins na literatura portuguesa da época, e que ainda hoje, quase cem anos após a sua publicação, continua ser um objecto sedutoramente insólito. E, através dele, lembrar o próprio Almada, que só com alguma relutância vem sendo admitido no terceiro degrau do pódio modernista doméstico, abaixo de Pessoa e Sá-Carneiro.

Embora se deva reconhecer que Almada também teve sempre defensores, e bastante recomendáveis, a começar por Jorge de Sena, talvez o primeiro a sublinhar a sua excepcionalidade no quadro de um modernismo português fortemente vinculado à herança pós-simbolista. Sena chamou especificamente a atenção para a “capacidade de invenção” dos seus textos em prosa, dando Saltimbancos como um dos exemplos disso mesmo. E Herberto Helder, no verbete que dedica a Almada em Edoi Lelia Doura, a sua muito restrita “antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa”, aproveita para lembrar que Nome de Guerra (1938) é “um dos apenas três ou quatro romances portugueses deste século que se podem ler sem desbaratos de tempo”.

Contrastes simultâneos

Numa lógica de trabalho que só cumplicidades muito consolidadas permitem, a dramaturgia de al mada nada, de Pedro Sobrado, foi sendo construída a par da própria encenação, em diálogo com Ricardo Pais e restante equipa.

Num texto intitulado Sol às escuras, que integra os materiais de divulgação do espectáculo e que é ao mesmo tempo um ensaio sobre Almada, uma inovadora leitura crítica de Saltimbancos e uma espécie de diário de bordo desta dramaturgia, Sobrado observa que o subtítulo que Almada apôs ao seu texto, (contrastes simultâneos), o “vincula programaticamente (…) à prática artística cultivada nesses anos por Robert Delaunay, o simultaneísmo”. É a partir desta chave — “sendo Saltimbancos um texto difícil, talvez se revelasse surpreendentemente fácil, se acaso o pudéssemos ler como quem vê uma tela”, diz ainda Sobrado — que a prosa de Almada é editada e remontada, sofrendo cortes, mas recebendo também passagens vindas de outros textos, designadamente do célebre trecho de A Invenção do Dia Claro em que o poeta se dirige à mãe e lhe pede: “Vem ouvir a minha cabeça contar histórias ricas que ainda não viajei!”.

Daí que as cirúrgicas rasuras impostas a Saltimbancos tenham visado menos a simplificação do texto — o que sobreviveu continua a ser um desafio infernal para a memória de qualquer actor, por muito treinada que esteja — do que “a exploração de alguns dos contrastes simultâneos que o habitam”. Por exemplo, adianta Sobrado, “o corpo desapossado dos soldados versus o corpo livre das raparigas [da aldeia onde o quartel está instalado]”, ou “a candura e inocência de Zora versus a bestialidade da ‘copulação assistida’ dos cavalos”.

Para nos dar a ver e ouvir estes e outros contrastes, a encenação recorre a um elenco improvável, que inclui, é certo, um actor, Pedro Almendra — o Pessoa ortónimo em Turismo Infinito —, mas que se completa com um percussionista, Rui Silva, intérprete de pleno direito deste espectáculo, e com seis b-boys da Momentum Crew, um prestigiado e premiadíssimo grupo de dança urbana radicado no Porto, e que Ricardo Pais conheceu em 2011, quando foi júri do concurso televisivo Portugal Tem Talento. Não sendo Pais um coreógrafo, esta opção — que o performer nato Almada Negreiros provavelmente teria apreciado —, continha riscos evidentes. Mas torna-se tão natural, no palco, que o espectador quase sai persuadido de que não havia maneira de encenar este texto que não passasse por esta articulação de voz, percussão e dança.

Um artista indignado

Se al mada nada consegue contrastar tão eficazmente a frenética violência futurista do texto de Almada com a pungente dimensão poética que Saltimbancos também tem, em boa medida o deve a estes bailarinos, que ultrapassam largamente o espectro de movimentos que associamos à breakdance.

Mas também o deve ao desenho de luzes de Nuno Meira, que pela segunda vez trabalhou com o cenário criado por Aires Mateus. A luz “polariza o espectáculo”, nota Ricardo Pais. “Começa com o sol a pique no picadeiro do quartel e acaba na escuridão absoluta, no final daquele discurso em que já não se sabe se quem fala é o pai da Zora ou é o Almada.” Refere-se ao momento em que os descontentes espectadores do pobre circo improvisado começam a apedrejar, uma a uma, as lâmpadas de acetileno que iluminam o espectáculo, acabando por o deixar às escuras e zangar o incompreendido patriarca cigano, que responde à assistência (ou então é Almada que invectiva os seus contemporâneos) com um indignado chorrilho de insultos: “malandos cabrões a minha vida a minha arte”.

Num espectáculo que joga nos contrastes, é também por aí que se deve ler a repetição do cenário de Turismo Infinito. Mais do que sugerir continuidades ou afinidades, trata-se de usar, por assim dizer, o mesmo fundo para melhor evidenciar o (quase tudo) que distingue Pessoa e Almada. “Querem mais diferentes que estes dois?”, pergunta no início do espectáculo a personagem Almada, explicando que Pessoa é “um auditivo” e ele “um visual”.

Mas o facto de o cenário ser o mesmo também torna mais nítidas as diferenças de fundo, estratégicas, entre ambas as encenações. Se Turismo Infinito, a partir da dramaturgia de António M. Feijó, se propunha ambiciosamente figurar a própria mente de Pessoa, al mada nada não pretende captar a essência de Almada ou retratá-lo de corpo inteiro. É a esta diferença de grau, e de gravidade, que a nota de apresentação do espectáculo alude quando diz que Ricardo Pais “abre agora um recreio” no cenário de Turismo Infinito.

Quem não tiver visto a opus pessoana do encenador, ou queira revê-la antes de assistir a al mada nada, já só terá três oportunidades: hoje, amanhã, ou na própria quarta-feira. E registe-se que o próprio Ricardo Pais garante que só depois de ter agora revisto Turismo Infinito se convenceu plenamente de que a sua opção de reutilizar o cenário em al mada nada é “acertada” e não se resume a “uma frivolidade”.

Podem invocar-se, para esta escolha, muitas razões que não implicam Pessoa nem Turismo Infinito. Ricardo Pais observa que “Almada era um geómetra, obcecado pela matemática”, e que, dos muitos cenários com os quais trabalhou, o de Turismo Infinito “era o mais essencialmente geométrico”. E nota que o palco em rampa — que exigiu algum esforço suplementar (e custou algumas deslocações de ombros) a estes b-boys — “faz com que mesmo o que se passa no chão desenhe uma geometria no espaço”.

Acentuando essa ideia de substituição, esse sai-Pessoa-entra-Almada, o espectáculo começa, ainda antes de começar, com uma espécie de prólogo em que um b-boy vestido de soldado limpa o espaço das marcas de Turismo Infinito, despachando do palco os assentos esféricos onde se tinham sentado Pessoa e companhia heterónima. Esta limpeza não impede, porém, algumas posteriores citações do espectáculo precedente, tornadas quase inevitáveis pela reutilização do cenário.

No entanto, se há em al mada nada uma aposta de resultado mais ambíguo, talvez ela seja justamente essa fugidia presença de Pessoa. Mas pode argumentar-se que, precisamente pelas expectativas que a repetição do cenário gera, a sua ausência total poderia, paradoxalmente, torná-lo ainda mais presente. 

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