Há festival na aldeia

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A partir de quinta-feira, uma pequena vila de 3000 habitantes transforma-se na casa do rapaz da terra: Tiago Guedes. A montanha vai a Minde - e às cidades vizinhas de Alcanena Materiais Diversos pode não saber para onde vai, mas sabe de onde vem

Isto que há duas semanas era um monte de papéis velhos, pó, colchões queimados, fotolitos e baldes de Skip (do tempo em que ainda havia fotolitos e baldes de Skip) é agora a bilheteira de um festival de artes performativas organizado por um rapaz da terra que já não sabia de que terra era desde os 19 anos. Aqui onde esta história começa, nas antigas instalações de uma gráfica desactivada numa vila de 3000 habitantes a 90 quilómetros de Lisboa, está tudo por fazer, e esse espírito é o programa do Materiais Diversos, que a partir de quinta-feira e até dia 29 faz o mundo ir a Minde (e às cidades vizinhas de Alcanena, sede do concelho, e Torres Novas) e Minde ir ao mundo - o mundo do alemão Raimund Hoghe e da húngara Eszter Salamon, mas também o mundo do Rancho Folclórico do Covão do Coelho, da Sociedade Musical Mindense, do aguarelista Roque Gameiro e do avô caixeiro-viajante de Tiago Guedes, que nos seus tempos de rapaz conheceu pessoalmente todos os concelhos de Portugal Continental e ainda se lembra bem dos armazéns de Espinho e do Porto onde fazia bom dinheiro.

- Pintamos as paredes com tinta preta - Mas não pedimos tinta preta, pedimos tinta verde

O que afinal é irrelevante porque a Grafiminde também é um mundo: além dos colchões, dos baldes de Skip, do néon da Rogan Malhas e dos sacos da loja Tons de Requinte, há caixotes com edições antigas do "Jornal de Minde", ainda mais fotolitos, e dezenas de convites de casamentos, baptizados e comunhões (evidentemente, copo de água que se preze é no restaurante digamos vistoso, mas com uma vista impressionante, onde Tiago Guedes já comeu várias fatias de bolo de noiva, incluindo o da tia).

- Vamos forrar a parede com isto E a partir de quinta-feira os espectadores do festival, os da terra e os de fora, vão comer caldo verde e beber babosas, isto é cervejas (também aprendemos a falar minderico), enquanto do alto das paredes da Grafiminde várias décadas da história local os contemplam. Além de bilheteira, a velha gráfica é livraria, discoteca, bar, escritório e sala de estar do festival - casa do povo, portanto. "Como estamos a começar, queremos fazer como fazem os festivais de que mais gostamos. E festivais sem ponto de encontro são sempre tristonhos. Queremos ter um sítio onde as pessoas possam estar depois dos espectáculos, para não se criar aquela coisa de ir cada um para sua casa e não haver tempo para conversar sobre o espectáculo. Além da Grafiminde, há uma série de outros lugares-fantasma que vamos ocupar", diz Tiago Guedes ao volante da carrinha, a caminho do Cine-Teatro São Pedro, em Alcanena, onde Martim Pedroso abre o festival com "Purgatório" (dia 19, 21h), espectáculo de onde se pode não sair vivo. O Materiais Diversos vai ter uma "blackbox" no auditório do Conservatório de Música Jaime Chavinha e tem planos criar um centro internacional de residências artísticas numa fábrica de malhas e confecções desactivada há anos (é uma história que se repete desde a década de 90, em Minde), a Jobasil.

Telefonemas da mãe, da avó - "Fazer um festival no sítio onde vive a família..." - e resultados: nós temos jantar (mas vai ser uma "coisa simples", canja de galinha, coelho estufado e leite-creme, não o "baptizado" que a avó de Tiago Guedes preparou para a jornalista anterior), o festival tem loiça. "Fizemos um convite à população para se livrar dos monos, para gastarmos o mínimo possível em mobília e essas coisas", explica o director do Materiais Diversos. Em casa dos avós há taças, canecas de cerveja, um serviço de chá. não? - E se não chegar tenho cá muita coisa.

Além de pratos, copos e sofás velhos, a organização do festival também andou portaa- porta a pedir voluntários e alojamento: "A oferta hoteleira é quase inexistente e por isso perguntámos às pessoas se estavam dispostas a receber artistas em casa. Conseguimos 35 camas. A ideia do festival é as pessoas estarem dentro de várias maneiras. Até no programa: substituímos as imagens dos espectáculos por retratos das pessoas do concelho". Foram fotografadas no mercado, no coreto, nas piscinas - é uma maneira de dizer que o festival, como elas, é dali. As centrais do "Jornal de Minde" também têm trazido artigos sobre o festival, com grandes entrevistas do rapaz da terra.

Envolver a comunidade, sobretudo em Minde, onde existe fortíssima tradição associativa ligada à música ("porta de entrada" de grande parte do cartaz desta primeira edição) e ao teatro, é um dos eixos fundamentais do festival e a equipa do Materiais Diversos leva o trabalho a sério. Paralelamente à "programação que podia ser feita em qualquer lado", alguma da qual vinda do estrangeiro - o espectáculo de abertura de Martim Pedroso, "Magyar Tàncok", de Eszter Salamon (dia 20, 21h), "L'Après-midi, Um Solo para Emmanuel Eggermont", de Raimund Hoghe (dia 21, 21h30), "De mim não posso fugir, paciência", de Tânia Carvalho (dia 27, 21h), "Bwyd Sonique", de Karine Décorne e Simon Proffitt (dia 28, 15-19h), e "Both Sitting Duet", de Jonathan Burrows e Matteo Fargion (dia 28, 21h), entre outros -, há "uma programação especificamente pensada com e para as pessoas daqui", incluindo espectáculos que resultam de residências, como "Um Passeio", de André Murraças (dia 28, 15h-19h), e espectáculos que resultam de convites directos a estruturas locais, como "Terroristas" (dias 24 e 25, 22h), que Cláudia Gaiolas monta com o grupo de teatro Boca de Cena, "A Portugueza", em que a Cão Solteiro e Vasco Araújo encontram a banda filarmónica da Sociedade Musical Mindense (dia 26, 21h), e um "remake" do duo "Ela não é francesa, Ele não é espanhol", de Inês Jacques e Eduardo Raon (dia 29, 18h), com a participação da Xaral's Band (ver caixas). "Minde tem banda filarmónica, grupo de teatro, conservatório, festival de jazz... As colectividades estão mesmo dentro do festival e estão expectantes. Mas a mediação continua a ser a parte mais importante, porque em Minde dizer Raimund Hoghe é o mesmo que dizer Maria Carolina e eu não quero correr o risco de o público ser todo de fora", sublinha Tiago Guedes.

De resto, praticamente todos os espectáculos do programa serão seguidos por conversas informais com os artistas destinadas a aprofundar a experiência do espectador - e há todo um trabalho de contextualização e de ligação à comunidade que vai desde a preparação dos alunos do Conservatório de Música, destinatários particulares de um espectáculo com as características de "L'Après-midi", criado a partir de Debussy, à associação da peça de Eszter Salamon, sobre o legado das danças tradicionais húngaras, com uma apresentação do Rancho Folclórico do Covão do Coelho, que assistirá a "Magyar Tàncok" já trajado, e ao projecto "Atelier do Espectador", conjunto de "aulas abertas" sobre a história das artes performativas orientadas pelo crítico do PÚBLICO Tiago Bartolomeu Costa.

Terapia de choque

A ideia do festival veio precisamente de uma conversa do género (e se não fosse essa conversa, diz Gabriela Capaz, prima de Tiago Guedes e directora do conservatório, as pessoas teriam gostado mas não teriam percebido nada e só teriam levado para casa umas "imagens" do espectáculo). Em Maio de 2008, quando o Cine-Teatro São Pedro reabriu depois de 22 anos de encerramento ao público, Tiago Guedes foi convidado a ir lá apresentar o espectáculo "Materiais Diversos" (na verdadeira inauguração, em 1954, Alcanena recebeu a visita da Companhia Amélia Rey Colaço- Robles Monteiro, como se lê na placa comemorativa que está no átrio): "Aceitei mas expliquei logo que o espectáculo não era assim tão directo e que convinha fazer uma conversa com o público, porque as pessoas tinham estado privadas de um teatro durante mais de 20 anos... Foi aí que propus um festival que fosse transversal ao concelho". O anterior executivo autárquico entusiasmou-se e assinou um protocolo com o Ministério da Cultura que garante esta e a próxima edição do festival, marcada para Setembro de 2010. A nova presidente da Câmara de Alcanena, Fernanda Asseiceira, também é uma entusiasta da criação de alternativas numa região marcada pelo declínio das duas mono-indústrias tradicionais, os têxteis e os curtumes, que passou "de uma empregabilidade elevada a ter problemas de desemprego". "Os jovens saem para estudar e muitos já não voltam - até porque a habitação aqui é cara, comparativamente, o que é incompreensível", diz ao Ípsilon a uma mesa da Pastelaria Gena, dois dias depois de ter sido eleita.

As ambições que Asseiceira tem para o concelho de Alcanena passam pela cultura - Tiago Guedes levou-a a visitar O Espaço do Tempo, de Rui Horta, em Montemor-o-Novo - e aí, nota, o director do festival Materiais Diversos "é um protagonista importante". Mas a nova presidente da Câmara sabe que "há toda uma pedagogia a fazer, e sobretudo toda uma formação de públicos a fazer" para que experiências como o Cine-Teatro São Pedro, o futuro centro internacional de residências artísticas e mesmo o festival possam ser rentabilizadas. Vítor Costa, que dirige o Cine- Teatro admite que "tem sido uma experiência fantástica" (sobretudo na parte, mais impraticável nas grandes cidades, em que é possível levar ao teatro pessoas que não são frequentadores habituais, como os operários) mas com "resultados divergentes": "As pessoas têm grande orgulho no teatro, mas só aparecem esporadicamente - e muitas ainda nem sequer lá foram. Foram 20 anos sem teatro, é preciso convencê-las de que vale a pena desligar a televisão e sair do sofá, e temos de programar em função do calendário do futebol e das despedidas de solteiro. Mesmo assim, num ano tivemos 20 mil espectadores. O concelho tem 15 mil habitantes, Alcanena tem quatro mil. O nosso potencial de crescimento é limitado". Espera que o festival seja "uma grande porta para uma programação mais contemporânea e mais difícil", que o Cine-Teatro tem procurado equilibrar com espectáculos de grande público (e sucessos garantidos, como o fado). "O que o Tiago vai fazer é uma terapia de choque. Estou ansioso por ver a reacção do público", resume.

Minde, diz Tiago, não faz tanta cerimónia com as artes performativas como Alcanena - "Apesar de nunca ter sido recuperado, o Cine-Teatro Rogério Venâncio esteve sempre a funcionar, e por isso toda a actividade cultu ral e recreativa estava em Minde" -, mas é preciso quebrar a distância (versão politicamente correcta de "rivalidade acesa") entre as duas localidades. "Gostava que o festival quebrasse esse hábito de as pessoas de Minde não irem a Alcanena e viceversa. Vai haver autocarros gratuitos para as pessoas poderem ir aos espectáculos". Torres Novas também está incluída no circuito - é o grande pólo regional e funciona como cidade- âncora do Materiais Diversos. "O Teatro Virgínia tem um palco maior. Este ano levamos lá o Raimund Hoghe, para o ano será o Benoît Lachambre", explica o rapaz da terra.

Linguajar local

De regresso a Minde, onde a família Guedes deu vários nomes de rua ("Tipógrafos e industriais da família do meu avô", diz ao Ípsilon), sentamonos no Estaminé a tentar perceber porque é que aqui sempre se fizeram tantas coisas - uma língua paralela inventada pelos comerciantes de mantas, para começar, e, mais recentemente, a Sociedade Musical Mindense, um grupo de teatro, um festival de jazz, o Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro (CAORG), um conservatório. "As pessoas sempre foram muito bairristas, e como Minde não é concelho habituámo-nos a ser autónomos e a não esperar que a câmara fizesse as coisas. Apesar de as pessoas sempre terem saído para ir vender mantas, Minde foi uma terra muito fechada e as pessoas tiveram de se bastar", sugere Elsa Nogueira, do grupo de teatro Boca de Cena. Henrique Lobo, da Casa do Povo de Minde (que, além do grupo de teatro, é a estrutura responsável pelo Festival de Jazz de Minde, pela TV Minde, pela Natura Minde e pelo Núcleo de Espeleologia), tem "uma teoria muito pessoal": "Eles [em Alcanena] sempre tiveram mais apoio, nós sempre tivemos mais habilidade. Em minderico, sede de concelho diz-se 'cabeça sem miolo'". Mais tarde, no conservatório, João Ramiro, director do CAORG (que abriu duas turmas, muito concorridas, para ensinar o "linguajar local"), também irá ao minderico para explicar a diferença de Minde: "O calão minderico surgiu porque os mindericos sempre viajaram muito. O facto de serem muito activos, por um lado, e de sempre se terem queixado da falta de investimento por parte da sede do concelho, por outro, fez com que tivessem feito as suas próprias coisas".

Além da técnica dos espectáculos do Boca de Cena, Henrique faz dezenas de outras coisas, incluindo a paginação do "Jornal de Minde" (mil assinantes, espalhados por quatro continentes). "Todos estamos metidos em várias coisas, o Henrique não tem vida própria", explica Elsa. Não trocavam a qualidade de vida de Minde por nada deste mundo - "Há escola até ao nono ano, todo o tipo de actividades para crianças e adultos, e podemos andar na rua de bicicleta" - embora admitam que "a terra tem de se transformar": "Já não é uma terra industrial, tem de ser outra coisa qualquer". - A nível industrial, isto não tem comparação, embora ainda hoje haja muitas fábricas - Mais de dez? - Mais de 20. Mas fecharam as grandes, e fazem muita falta. Quando eu era nova muita gente vinha para aqui trabalhar, gente destes arredores todos. Vinham a pé, da serra. Eu saí da escola com a quarta classe e fui seis meses para as malhas. Era uma terra muito industrial. Até chamavam a isto Manchester. Estamos no jardim da tia-avó de Tiago Guedes, Maria Emília Morgado, que trouxe os álbuns de fotografias do teatro. Num deles, aponta para "Madre Alegria", a última peça que fez. O sobrinho-neto, este que agora está a organizar um festival, também entrava: "A tradição do teatro vem de a gente já nascer nisto. Os meus filhos chegaram a representar comigo, eram pequeninos. Minde sempre foi terra de teatro - e de música também, todos os meus filhos andaram na banda. Lembro-me de em 1932, antes de eu ser gente, se ter feito aí 'As Duas Órfãs'. Nas outras terras faziam-se umas coisecas, mas em Minde faziase teatro a sério. Os cenários vinham de Lisboa, feitos por bons pintores. Havia falta de sítios para teatro e então era nas fábricas que se fazia".

Precisamente. Antes tínhamos parado à porta da Jobasil, os 6000 metros quadrados de fábrica desactivada que Tiago Guedes quer transformar num centro de criação multidisciplinar permanente que inclua, além das artes performativas e visuais, o design de moda: "Faz todo o sentido que haja aqui residências de jovens criadores, em articulação com as fábricas da região". Lá dentro, ainda há tabuletas com "medidas de homem para camisa, pullover, camisete, colete e blusão", máquinas de costura e sacos com etiquetas, mas na cabeça dele isto onde agora estão amontoadas dezenas de malhas podem ser os quartos e aquilo onde funcionava a administração da fábrica pode vir a ser a sala de reuniões.

Mesmo que o futuro não esteja exactamente na Jobasil, não estará longe. "A minha ideia é vir para aqui com a Materiais Diversos a partir de 2011. Seria a primeira estrutura artística profissional sediada no concelho. Parece longe, mas são 90 quilómetros de auto-estrada, ponho-me cá em 50 minutos". Antes do centro internacional de residências artísticas, porém, há duas edições de Materiais Diversos. Tiago quer que a edição de 2010 seja "ainda mais participativa" e tire mais proveito da paisagem (Minde está em pleno Parque Natural das Serras D'Aire e Candeeiros e tem uma mata, o Polje de Minde, que está mesmo a pedi-las). Planos para o próximo ano (lista não exaustiva): vai haver "uma peça com todos os antigos actores da companhia Boca de Cena", uma "fanfarra coreográfica com os bombeiros", piqueniques com espectáculo (o Matérias Diversos dá a toalha), concursos do "melhor cão de seis pernas" e do "grito mais sonoro", projectos "especificamente pensados para os coretos" e um "complaints choir" formado a partir dos dois coros de adultos de Minde e das queixas da população.

Mas isso, dizíamos, é para o próximo ano. Antes disso há um festival para fazer, nas traseiras lá de casa.

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