Estes actores foram trabalhar para o campo

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As Comédias do Minho estão no interior, a fazer teatro de igual para igual com o território. Há teatro na aldeia este fim-de-semana

Dona Esmeralda está ao telefone com a sobrinha nesta tarde de fim de Março em que voltamos a subir as escadas e nos sentimos em casa, porque já estivemos aqui antes e sabemos que a cozinha onde ela "nunca tinha servido tantos cafés" nem tantos biscoitos fica à direita do corredor e que o quarto com uma Nossa Senhora fluorescente e muitas fotografias a preto e branco é ao lado da casa de banho. No dia da estreia de "Contra-Bando", um ciclo de cinco espectáculos criados de raiz para as Comédias do Minho por Madalena Victorino que a companhia retoma hoje, em formato maratona, a Dona Esmeralda tinha ido ao cabeleireiro e tinha a freguesia de Bico (Paredes de Coura) em peso na cozinha (mais o presidente da Câmara, o vereador da Cultura, o Ípsilon, a "Visão" e dezenas de pessoas que nunca tinha visto na vida) e ela é franca: até gostou. Na tarde em que lá voltámos está de bata (como em todas as fotografias do espectáculo, resmunga, mas não nas nossas: nas nossas está com uma blusa branca muito bem engomada), e em cima da mesa só há uma peça de roupa para remendar quando nos formos embora, nada de chávenas de café nem biscoitos: isso foi o teatro, e a vida dela é outra coisa. Em Fevereiro houve três dias em que se confundiram e no domingo confundem-se outra vez: podíamos passar horas e horas a tentar, mas não íamos encontrar melhor maneira de dizer o que são as Comédias do Minho.

Uma telenovela brasileira que acaba em casamento na cozinha da Dona Esmeralda (e era assim que ela "imaginava a vida do padrinho", que emigrou para o Brasil e nunca mais voltou, a não ser numa fotografia que chamou a atenção de Madalena Victorino porque, explica Dona Esmeralda, "é uma fotografia como não há por aqui") e a seguir a sopa mítica da Dona Nilda em Bico, Paredes de Coura, um crime de faca e alguidar numa cabana de pescadores de lampreia em Campos, Vila Nova de Cerveira, um coração de porco numa ermida em Parada do Monte, Melgaço, uma tarde na mercearia dos Vilar em Lara, Monção, e as saias de sabão da contrabandista Inês da Fontoura nas estufas de cravos do senhor Vaz, em Verdoejo, Valença. Nos últimos meses, as Comédias do Minho foram isto que se repete a partir das 22h de hoje, por esta ordem: Cerveira (22h, hoje), Valença (11h de amanhã, sábado), Monção (15h de sábado), Melgaço (21h30 de sábado) e Paredes de Coura (11h de domingo). Nos últimos anos - desde 2003, ano em que a companhia foi criada por cinco municípios do Alto Minho "que consideraram que já tinham os seus problemas básicos resolvidos", explica Isabel Alves Costa, que assumiu a direcção artística em 2005, com Miguel Honrado - também.

"O 'Contra-Bando' representa o aprofundar de uma relação directa com a população que faz parte dos pressupostos da companhia. Aqui abandonámos o palco: as peças foram feitas e apresentadas ao nível do público, mas essa é uma dimensão que demos ao projecto logo no primeiro trabalho com Pierre Voltz, em 2005. A capacidade que os actores têm de olhar para as pessoas nos olhos foi uma conquista fundamental destes dois anos. Este projecto exige uma relação íntima com a população", continua Isabel Alves Costa. Foi particularmente íntima nos últimos meses - ao ponto de as Comédias do Minho se terem sentado na cama da Dona Esmeralda e alimentado as ovelhas da Dona Nilda - mas já tinha sido íntima quando fizeram a "Antígona" em Castro Laboreiro e as senhoras da aldeia, "vestidas de negro e apoiadas em cajados", choraram do princípio ao fim, de todas as vezes que tiveram 120 pessoas num salão de bombeiros, e sempre que, no final de uma representação numa das 103 freguesias do Vale do Minho (no Centro Cultural de Paredes de Coura, onde a companhia está sedeada, mas também em "locais profundamente alternativos": salões paroquiais, juntas de freguesia, casas do povo, terreiros, cafés), levaram para casa chouriços, bola de carne e garrafas de Alvarinho.

Nada disto acontece em mais lado nenhum

No livro que resume os últimos dois anos de actividade da companhia - que manteve a estrutura de cinco actores mas substituiu a figura de encenador residente por uma comissão artística que define a estratégia e convida criadores de orientações tão diferentes como Pedro Penim e Madalena Victorino para diversificar até ao limite a formação contínua da equipa -, as Comédias do Minho apresentam-se como um projecto que propõe "um modelo inovador de programação radicado em práticas concretas de inscrição no território". É original a este ponto de ser "como se estivéssemos no estrangeiro, porque nada disto acontece em mais lado nenhum". "Onde é que há cinco presidentes de Câmara que decidem criar uma companhia de teatro profissional - e que a transformam numa associação de direito privado, o que permite agilizar o funcionamento e a contabilidade do projecto, sem aquelas coisas da administração pública? Outra coisa extraordinária: não interferem na direcção artística, querem é que a companhia leve o teatro às aldeias. E depois aparece a Ventominho, uma empresa das eólicas que achou que tinha obrigação de redistribuir parte da riqueza e decidiu reinvesti-lo na cultura. Tirando os teatros nacionais, nenhuma outra estrutura tem um mecenas como este", diz Isabel Alves Costa.

As condições são exemplares, mas o trabalho que têm pela frente num território com todos os problemas da interioridade - e uma população envelhecida, com problemas de alfabetização e sem historial de contacto com as artes performativas - também tem tudo para o ser. Nisso, tanto a Dona Esmeralda como a Dona Nilda - onde este fim-de-semana especial "Contra-Bando" vai parar, domingo à hora de almoço, com uma grande panela de sopa - são representativas do público-alvo das Comédias do Minho. Trabalharam toda a vida no campo, o máximo a que puderam aspirar foi a quarta classe e não souberam o que era o teatro profissional até ao dia em que Madalena Victorino e os actores da companhia lhes bateram à porta. "Deixei-os entrar porque traziam o presidente da junta e a minha vizinha, já sabiam que se viessem sozinhos não lhes abria a porta porque não os conhecia de lado nenhum. Sentaram-se ali à lareira porque estava muita chuva e puseram-se a perguntar como é que se coze o pão, como é que se cultiva o milho. Depois é que me perguntaram com que é que eu sonhava e eu contei que sonhava que o rio crescia", explica a Dona Esmeralda.

Não fazia ideia do que vinha a seguir: gente a entrar e a sair de casa (mas sem dramas: "Se eu tivesse muitos luxos, eles podiam estragar alguma coisa, mas não tenho"), e uma história que em parte é a dela (também há a parte que é do padrinho dela) transformada num espectáculo de teatro diferente das coisas que ela fazia na escola ("Uma vez fizemos uns versos e fui eu que recitei, porque tenho facilidade em tirar as coisas dos livros, ficam-me bem na cabeça; fazíamos teatros, danças, coisas com um bocado de graça"), mas que ela acabou por fazer também. "Participo, mas é coisinha pouca - e mesmo que fosse grande coisa, também não sou atrapalhada. Disse-me uma mulherzinha que estava a ver quando é que eu me enganava, mas enganar-me porquê? Nós tínhamos ensaiado", continua. Apesar de ter ouvido dizer "que eles andavam para aí", nunca tinha visto as Comédias do Minho.

Foi "habituada" a estar em casa, sobretudo à noite, como a Dona Nilda, de 80 anos, que anda no campo à hora a que chegamos, atrasados, e grita "já vou!" quando nos vê à porta, lá do fundo da estrada. Também nunca tinha visto as Comédias do Minho ("Ao teatro? Não senhor, nunca fui para nenhum sítio"), mas deixou a companhia entrar-lhe em casa, misturar-se com as ovelhas e no fim ainda fez uma sopa: "Eles vieram cá, fizeram muitas perguntas sobre o que eu punha na sopa, e eu disse que punha feijões, carne, batata, cenouras e couves, mas nunca com a ideia do teatro, porque eu topava isto tudo muito feio por causa dos penedos. Depois é que me perguntaram se deixava usar a casa e eu disse que sim, mas que era tudo velho". Acabou nos cartazes da peça, com uma ovelha ao colo, em todo o Vale do Minho, e gostou tanto que até tem um guardado "para dar a um neto que vem de Lisboa".

Aproximação vertiginosa ao público

É possível que apareçam, um dia, para ver uma das próximas produções da companhia, mas mesmo que não voltem parte do trabalho está feito. "Aqui vemos ao vivo o que é a formação de públicos. A atitude das pessoas é: mas o que é que eles irão fazer a seguir? Não estão de todo à espera do mesmo", salienta Isabel Alves Costa. Além dos milhares de pessoas que já viram as Comédias do Minho - numa região desertificada que em 2001 só tinha 62 mil habitantes para 800 quilómetros quadrados -, também é preciso contabilizar os públicos com que a companhia se cruzou através do projecto pedagógico "Aproximarte" (que intervém junto das escolas, dos agentes locais e dos grupos de teatro amador) e dos projectos comunitários que mobilizam as populações e o tecido associativo para uma lógica de reinvenção das tradições locais. É trabalho que nunca mais acaba para cinco actores (Gonçalo Fonseca, Luís Filipe Silva, Mónica Tavares, Rui Mendonça, Tânia Almeida) que vieram de fora (a maioria de Lisboa) para viver no campo e fazer uma coisa que "não é a descentralização, é uma nova centralidade".

Nos próximos dois anos, vão continuar todos ali - mas mais dia, menos dia, admite Isabel Alves Costa, "é natural que queiram ir à sua vida". "Isto é de um isolamento brutal, e saímos pouco do Vale do Minho porque itinerância já é o que fazemos aqui, e radicalmente. Fomos a Lisboa e ao Porto com o espectáculo do Pedro Penim ['Eldorado'], vamos ao FITEI com o do Igor Gandra ['Estufa Fria'] e a Cabo Verde com o 'Auto da Paixão' do João Pedro Vaz, mas é só para arejar, porque o nosso trabalho é aqui", defende.

Agora que aqui é o café-mercearia-drogaria de Verdoejo onde nos sentamos para ver, na RTP, o directo de um dos últimos ensaios de "Contra-Bando", também já sabemos o que é ver a formação de públicos ao vivo. "Houve pessoas que vieram ver os espectáculos oito vezes - para perceberem melhor e para se reverem a si próprias, porque também tinham vivido aquela história, porque algumas destas coisas são iguais às suas vidas", conta ao Ípsilon Madalena Victorino, uma semana antes de voltar a Lisboa, depois de "um Inverno muito duro". "Contra-Bando", diz, é igual a ela própria, igual à maneira como sempre trabalhou - com "uma ideia clara de aproximação vertiginosa e verdadeira" ao público - mas é sobretudo igual às Comédias do Minho. Elas é que vão ficar, quando tudo o resto - incluindo as visitas deste fim-de-semana - for embora.

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