Os grandes temas da filosofia, uma vez por dia

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Se a Mafalda de Quino foi a BD de tempos mais políticos, “o Calvin é para esta época, em que a política já não é um imperativo categórico”, diz o editor Guilherme Valente, que sugeriu Calvin & Hobbes a um novo jornal: o PÚBLICO

Uma relação desenhada para os jornais só podia dar nisto. Durante quase duas décadas, o PÚBLICO e Calvin & Hobbes foram inseparáveis. Desde que Guilherme Valente, editor da Gradiva, sugeriu a tira ao designer do jornal, Henrique Cayatte, e ao então subdirector, José Manuel Fernandes — então à procura de uma tira de BD para o diário de referência que estava a nascer —, a história da criação de Bill Watterson em Portugal está indissociavelmente ligada a este jornal. Cayatte diz mesmo: “Calvin e Hobbes deveriam ser considerados também fundadores do PÚBLICO.”

“O Calvin tornou-se um símbolo do PÚBLICO”, refere Guilherme Valente. “Muitas pessoas diziam-me que compravam o jornal por causa do Calvin; é um exagero, compravam-no por ser um bom jornal, mas muitas começavam a lê-lo pelo Calvin”, afirma o editor.

“Passados 25 anos, tenho presente não só o episódio como o local onde se desenrolou”, conta Cayatte, recordando como Valente lhe falou na tira de Watterson como a mais indicada para o jornal que haveria de sair para as bancas a 5 de Março de 1990: “Foi no meu atelier antigo, num prédio que já não existe, que foi onde o PÚBLICO nasceu.” Quando Valente falou nessa tira de BD que lia habitualmente no South China Morning Post em Macau, onde vivia, Cayatte e José Manuel Fernandes ficaram entusiasmados. “Andávamos à procura junto dos representantes de direitos de outros autores, mas não estávamos satisfeitos”, explica o designer. “Havia um encaixe plástico e conceptual perfeito com o Calvin & Hobbes. Pelo traço, pelo humor culto e pela excelente e inteligente tradução de Helena Gubernatis.”

“Foi a primeira vez que traduzi uma BD e fiquei rendida logo à primeira tira”, conta Gubernatis. Abordagem quase cinematográfica com uma dinâmica invulgar e enorme liberdade criativa, “frescura de uma irreverência sábia”, imaginação sem limites, “humor inoxidável” são algumas das características que fazem dela uma “criação algo libertária”, nas palavras da tradutora.

Se a Mafalda de Quino foi a BD para tempos mais políticos, “o Calvin é para esta época, para um mundo mais aberto, em que a política já não é um imperativo categórico”, explica Valente, amante da nona arte desde os tempos do Mosquito e do Mundo de Aventuras. “A diferença entre o Calvin e a Mafalda é que aquele é polissémico, intemporal, é sobre o espanto da existência humana. Os grandes temas da filosofia estão no Calvin”, continua o editor.

Luís Louro, o criador de Jim del Monaco e O Corvo, refere, sobretudo, “o texto genial que chega a todas as idades”. E embora não sinta influência de Watterson no seu trabalho, “uma vez que são estilos muito diferentes”, admite que a mesma possa existir: “Talvez indirectamente, pois comprei todos os seus livros e sempre me deliciei a lê-los.”



Sorrir com mais frequência

É normal que não haja influências visíveis na BD portuguesa, “uma vez que são poucos os que praticam a tira cómica e os que o faziam tinham já um estilo próprio, de crítica social e política, bastante afastado da riqueza gráfica e do espírito filosófico de Watterson”, adianta João Paulo Cotrim, antigo director da Bedeteca de Lisboa. Para o crítico e historiador de BD Pedro Moura, “existem muitos autores, de umas gerações mais jovens, que terão encontrado em Calvin & Hobbes um modelo curioso”, em que se “mistura a abordagem estilizada das personagens na sua realidade” com “um naturalismo mais detalhado para a fantasia” e “a exploração totalmente livre da criatividade infantil”. Mas se há coisa que a Nuno Amado parece evidente é que “garantidamente influenciou” os leitores portugueses. Amado, que mantém o blogue Leituras de BD, está convencido de “que toda a gente que leu o Calvin foi influenciada”, porque o texto simples e directo “toca a todos os leitores”, fazendo com que a identificação seja imediata. “Penso que parte da fortuna apontada acima tem a ver com o facto de a tira (como outras, historicamente) ter conquistado um público bem mais alargado do que os leitores-fãs de BD propriamente ditos. As razões são várias. Terem sido publicadas num diário influente e, à época, novo, foi decisivo”, afirma Pedro Moura. João Paulo Cotrim partilha da opinião, porque, “além das qualidades intrínsecas da tira, o facto de ter sido publicada num jornal que foi um caso particular (de influência do gosto)” permitiu-lhe ganhar leitores.

Os dois, jornal e BD, acabaram por consolidar-se em conjunto. A tira “era muito pouco conhecida”, afirma Cayatte, confessando que Calvin & Hobbes entrou à condição nas páginas do PÚBLICO. Só que “ao fim de duas semanas a adesão era entusiástica” e já não houve necessidade de recorrer a uma segunda escolha. A tira “foi presença diária durante anos e anos para um dia desaparecer deixando nos leitores a sensação de grande perda de um dos traços identitários” do jornal, desabafa o designer. “Calvin & Hobbes era um património do PÚBLICO. Absolutamente indissociável. Para mim continua a ser”, diz Cayatte. Valente subscreve a associação: “Sempre senti que no jornal há um átomo em que participei e tenho muito orgulho nisso.”

O jornal publicou as tiras de Calvin desde o seu primeiro número até 28 de Fevereiro de 2008, sempre com tradução de Helena Gubernatis, que também traduziu o primeiro álbum editado pela Gradiva em Portugal. Esse e o segundo foram edições conjuntas PÚBLICO/Gradiva.

“Embora Watterson tenha produzido esta BD durante dez anos, traduzi as tiras repetidas como se as visse pela primeira vez”, explica a tradutora. “Foi uma grande lufada de ar fresco no mundo da ilustração publicada no nosso país, que pôs milhares de portugueses a sorrirem com mais frequência: um enorme talento e inteligência refinada acompanhados por uma integridade ímpar, já que Watterson nunca permitiu qualquer merchandising e teve a coragem de cessar a produção da tira antes que a inspiração esmorecesse.”

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