De Miguel de Cervantes Saavedra para o amantíssimo leitor português

Foto

Escritas há 400 anos, as "novelas exemplares" de Cervantes podem ser lidas hoje como modernas. Já lá está quase tudo o que viria a ser a narrativa moderna. Uma "escritura desatada", nas palavras do génio espanhol, foi agora traduzida na íntegra para português

Pela primeira vez em muitas décadas, os leitores portugueses têm à sua disposição uma tradução integral das "Novelas Exemplares" de Miguel de Cervantes Saavedra. Originalmente publicada em 1613 - anos depois da publicação da primeira parte de "D. Quixote de la Mancha" - a obra compõem-se de uma dúzia de pequenas histórias (novelas), escritas entre 1590 e 1612, a que Cervantes deu um certo carácter ora didáctico ora moral; o próprio afirma no prólogo que "não há nenhuma de que não se possa tirar algum exemplo proveitoso", isto apesar da violência e de alguns exemplos de "maus costumes" que atravessam as mesmas. A influência das tendências moralizantes é bastante simples e faz-se sentir quase sempre apenas no final das histórias.

Diga-se, antes de mais, que o adjectivo "exemplares" do título é um pouco forçado para o tempo em que foi usado, e para o significado que então tinha. À época, eram bastante populares entre os leitores europeus as chamadas "histórias de proveito e exemplo", mas todas elas tinham uma origem que não era a Península Ibérica, antes se inscreviam numa tradição da Europa Central e do Norte, como resultado de um imaginário povoado por seres etéreos que não faziam parte do folclore dos reinos do Sul. Essas "histórias" tinham uma carga religiosa e moral bastante forte, e as suas personagens assentavam não tanto nos modelos dos vivos mas, sobretudo, no que se supunha ser a vida das almas antes de se verem livres do cativeiro terreno. Eram histórias de "almas penadas" (ou outras criações etéreas) que tentavam expiar os pecados e, ao mesmo tempo, com o seu exemplo, tentar ensinar os vivos a que não repetissem os erros por elas cometidos. A literatura portuguesa tem uma obra desse género, da autoria de Gonçalo Fernandes Trancoso, "Contos & Histórias de Proveito & Exemplo", publicada em 1575, quase quatro décadas antes do título do génio espanhol.

A obra de Cervantes, a querer encontrar-se uma filiação (e ela é, ou foi, bastante discutida entre os eruditos), está mais perto das "novellieri" italianas (de que Boccaccio foi um exímio cultor) do que das verdadeiras histórias exemplares. É aliás o próprio Cervantes que diz no prólogo que elas lhe saíram inteiras do seu génio: "(...) e é assim, que eu sou o primeiro que novelei em lingua castelhana, que as muitas novelas que nela andam impressas todas são traduzidas de linguas estrangeiras, e estas são as minhas próprias, não imitadas nem furtadas: o meu engenho as engendrou, e as pariu a minha pena, e vão crescendo nos braços da estampa." Talvez seja isso que faz com que estas "novelas exemplares" não sejam pura arqueologia literária, e antes pelo contrário - como acontece com toda a grande literatura - se mantenham vivas. Lidas hoje, poderão considerar-se modernas, pois o engenho narrativo de Cervantes deu-lhes uma roupagem que viria a influenciar toda a narrativa posterior: o narrador narra ele próprio apenas quando lhe convém, dá a palavra às personagens quando julga necessário, fá-las dialogar ao ver que daí poderá vir vantagem para a estética da história, as descrições feitas dos ambientes ou de factos alternam muitas vezes entre o pessoal e o impessoal; todos estes aspectos, assim em conjunto, foram uma novidade na arte de narrar; é o que o próprio autor viria a chamar de "escritura desatada". Um exemplo: a "Novela da força do sangue" poderia ser um conto policial moderno, talé a sua estrutura e arquitectura psicológica da personagem.

Cervantes estava bastante seguro da sua importância nas letras hispânicas, o "D. Quixote" tinha a primeira parte publicada com grande sucesso e aclamação. E é curioso como no prólogo a estas "novelas exemplares" ele se quer mostrar também como um herói militar, um soldado que luta, e descreve-se assim: "Perdeu na batalha naval de Lepanto a mão esquerda [entenda-se a função da mão esquerda, que anquilosou] de uma arcabuzada, ferida que, ainda que pareça feia, ele a tem por bonita, por tê-la cobrado na mais memorável e alta ocasião que viram os passados séculos, nem esperam ver os vindouros, militando debaixo das vencedoras bandeiras do filho do raio da guerra, Carlos V, de feliz memória."

Se alguma influência existir (pela complexidade psicológica de algumas personagens, arquitectura da acção e realismo das situações), será a da novela de Mateo Alemán. É quase certo que Cervantes conheceria a obra deste seu contemporânio, o sevilhano que fez publicar em duas partes, em 1599 e em 1604, "Guzmán de Alfarache" (Campo das Letras, 2008), aquela que é considerada a novela picaresca "perfeita". O estilo incisivo, a vivacidade da narração, o colorido das descrições e a capacidade de observação dos pormenores, parecem ter algum paralelismo com as novelas de Cervantes. Guzmán de Alfarache, o pícaro filho do ócio, o eterno vagabundo, narra-nos a sua história de vida feita de vícios e pecados avulsos, mas sempre prometendo a virtude futura. As inúmeras situações ridículas e bastante risíveis, superficiais e inconsequentes, que caracterizavam as personagens de "Lazarillo de Tormes", dão agora lugar ao dramatismo da maldade inata de uma sociedade degenerada, em que o herói pícaro se obriga a ter vontades moralizantes e a contar histórias didácticas de proveito e exemplo. O optimismo do Renascimento parece dar assim lugar ao Barroco influenciado pelo moralismo da Contra-Reforma. Cervantes juntou às suas novelas as "tendências espanholas" que herdara de Lope de Veja e de Mateo Alemán.

As obras de Miguel de Cervantes reflectem o meio em que ele vivia, os gostos e os costumes do tempo. Para ele, a vida seria como uma novela, a realidade oferecia-lhe assuntos e modelos, uma espécie de "pintura ao vivo" de vários tipos, a arquitectura da história servia-lhe para embelezar. A realidade vivida torna-se nas mãos de Cervantes (na sua pena) numa "realidade artística". É certo que nem tudo o que ele escreveu foi inspirado na sua própria vida, ele serviu-se de memórias alheias, escritos de viajantes, que ao contrário do que por vezes possamos ser levados a pensar, não fantasiavam. Madrid era o centro do mundo, toda a gente culta conhecia a lingua castelhana. Fantasiar uma viagem a Madrid, era à época impossível, assim como para nós é, nos dias de hoje, fazer de uma viagem a Paris ou a Londres um acontecimento inverosímil.

As doze "novelas exemplares" de Cervantes são um retrato da Espanha do "Siglo d'Oro", uma espécie de catálogo dos problemas sociais, políticos e históricos do tempo. Ele ficciona os problemas de minorias pouco populares, como os ciganos ou os judeus convertidos; ilustra com génio as dificuldades do que hoje se chamaria "mobilidade social", e descreve a maneira de viver de indivíduos que teimam em manter-se (por gosto ou por inabilidade) nas franjas da sociedade. Outro dos temas fortemente presente é o do papel opressivo da "honra" (assunto já antes popularizado por Lope de Vega, e que mais tarde se viria a tornar no principal "leitmotiv" do drama espanhol). Na "Novela de Rinconete e Cortadilho", por exemplo, não é apenas um quadro dos costumes dos ladrões sevilhanos de finais do século XVI, é todo um estudo de vida da ladroagem da Espanha desse tempo.

Estas novelas exemplares poderão ser divididas em dois tipos: as "idealistas" e as "realistas"; as primeiras, caracterizam-se por enredos amorosos, com grande abundância de acontecimentos, personagens idealizadas mas sem espessura psicológica; as segundas, pela descrição de ambientes e personagens realistas, muitas vezes com uma intenção crítica. Mas o que é certo, é que ainda hoje são um deleite de leitura para o "amantíssimo leitor", como escreveu Cervantes.

Sugerir correcção
Comentar