Charlaine Harris: Os humanos são os verdadeiros monstros, não os vampiros

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A escritora que inventou os vampiros da Luisiana, postos ao serviço de uma sátira da discriminação dos gays nos EUA na série True Blood, é uma caixinha de surpresas. Charlaine Harris criou uma heroína telepata que, como todas as outras personagens, têm um bocadinho dela. As duas gostam de rir.

Se fosse uma personagem dos seus livros, seria Adele Stackhouse, a avó da heroína da improvável mas viciante série de vampiros com picante sabor cajun, onde os verdadeiros monstros acabam por ser os humanos. Charlaine Harris é uma senhora baixinha, redondinha, com um cabelo curto e louro a fugir para o ruivo, olhos rasgados que fazem muitas pregas nos cantos quando ela solta uma gargalhada - e isso acontece muitas vezes. Quem diria que é da cabeça desta simpática senhora americana de 58 anos que saem as aventuras que deram origem à série de televisão da HBO True Blood, uma surpresa, primeiro, e um êxito, depois, nos Estados Unidos e mais ou menos por todos os países onde foi exibida, Portugal incluído?
Charlaine Harris já publicou nove livros que têm Sookie Stackhouse como heroína - o décimo saiu nos EUA a 4 de Maio, chama-se Dead in the Family e o primeiro capítulo está disponível para ler on-line no site da escritora, em http://www.charlaineharris.com. Em Portugal, acaba de sair o quarto livro da série, que recebeu o título Sangue Oculto (editora Saída de Emergência). Para os leitores portugueses, só uma pontinha do véu levantada - algo meeeesmo importante acontece neste quarto livro para dar corpo ao triângulo amoroso em que dois dos lados são vampiros, um louro, outro moreno, qual deles o mais apetecível - embora igualmente problemático para a loura Sookie.
Mas como é que alguém se lembra de inventar uma heroína que tem um namorado vampiro?  Ambos os apaixonados são nados e criados no Sul dos Estados Unidos, um casal muito E Tudo o Vento Levou, mas com uma reviravolta completamente inesperada - ele está morto, e ela tem, nas suas próprias palavras, uma "deficiência" que a impediu de conseguir uma relação íntima até estar bem dentro da casa dos 20 anos: é telepata, ouve os pensamentos das outras pessoas, as ideias mesquinhas que passam pela cabeça dos outros, os comentários lúbricos que os seus pretendentes julgam fazer só com os seus botões.
Uma mulher problemática

"Bom, a minha carreira não estava a correr como gostaria, por isso sentei-me a pensar que livro é que poderia escrever que me fizesse feliz mas que também atraísse mais leitores. Lembrei-me que seria divertido escrever sobre uma rapariga que namorasse com um vampiro. A partir dessa ideia construí todo o conceito da personagem da Sookie e do mundo em que ela vive", contou ao P2 Charlaine Harris, que passou recentemente por Lisboa para lançar o quarto livro da série.
A empregada de bar de uma pequena cidade do Norte do Luisiana, loura e bronzeada, simpática mas com um segredo mal guardado (a telepatia) em que a cidade prefere não acreditar (mais vale ficar-se pela opinião partilhada de que ela é "um bocado esquisita), é uma southern belle com problemas, como uma rosa que esconde uma vespa no fundo do seu botão.
"Não acredito em supermulheres. Todas nós trazemos connosco o nosso passado e por vezes são coisas muito más. Sookie tem mesmo problemas graves, mas tinha de ser assim, era a única explicação para que uma mulher namorasse com um vampiro, que está morto, sem ser louca. Tinha de dar-lhe uma boa razão para o fazer, e a telepatia era essa deficiência", explica a escritora. "Foi uma coisa horrível para lhe fazer, mas pronto, teve de ser."
E construiu Sookie a partir da sua própria experiência? "Bom, claro. Todas as minhas personagens têm algo de mim, é o que tem piada em ser escritora!"
O resultado foi uma série (livros) que é difícil de definir, e isso reflecte-se nos prémios que tem conquistado, de vários géneros literários: ficção científica, fantasia, terror, mistério, romance... A própria Charlaine não se detém muito em definições: "São uma mistura, têm uma base de ficção científica, mas têm ingredientes de mistério fortes e uma pitada grande de romance."
Certo é que a heroína loura com grandes doses de ingenuidade atrai tudo quanto seja ser sobrenatural, e não apenas vampiros. O ponto de partida da história é a "saída do armário" - ou do caixão, como diz uma personagem algures na série televisiva... - dos vampiros, que se revelam como verdadeiros ao mundo, e não meros pesadelos, depois de os japoneses terem inventado um sangue sintético que pode satisfazer todas as suas necessidades energéticas (a bebida True Blood). Mas há uma infindável galeria de seres sobrenaturais na Luisiana de Sookie: lobisomens e criaturas capazes de se transformar em muitos outros animais (como raposas, morcegos e tigres), bruxas, fadas (que não têm mesmo nada a ver com a visão tradicional dos contos infantis) e até, desconfia-se, hobbits. Elvis Presley também por lá anda (é um vampiro, mas é segredo, a transformação já na morgue não correu muito bem).
A inadaptação - de Sookie, para começar - é um tema forte da série, tal como a intolerância. Sob a capa da intolerância em relação aos vampiros, a estes humanos diferentes - na realidade, mortos, mas a operar na sociedade dos vivos, a fazer dinheiro e a seduzir tremendamente os humanos que respiram, muitos deles mortinhos por se livrarem de alguns decilitros de sangue em troca de sexo escaldante com as nocturnas criaturas - Charlaine Harris aborda com mais ou menos subtileza a discriminação dos homossexuais ou a discriminação racial.
Os verdadeiros monstros
É um retrato da América, só que com vampiros? "Beeem", começa a dizer Charlaine Harris, com aquele sotaque arrastado e musical do Sul dos Estados Unidos (nasceu no Mississípi e mora em Magnólia, uma pequena cidade - "Não tão pequena como Bon Temps!", a cidadezinha ficcional onde vive Sookie Stackhouse - com cerca de 11 mil habitantes). "É um retrato um bocado distorcido da América... São livros de fantasia, mas há ali algumas verdades, claro. A discriminação das pessoas gays, sim. Definitivamente, estou a pôr um espelho à frente do que eu vejo que é a América. Mas acho que as condições não são muito diferentes em nenhum outro sítio." 
A maneira como o faz tem um sentido de humor e do absurdo que se torna cativante. Por exemplo, uma bruxa amiga de Sookie, que acaba a viver na casa dela (depois de uns probleminhas em Nova Orleães, ao transformar um amante em gato, não conseguindo depois desfazer o feitiço...), tem uma relação homossexual com uma vampira, para escândalo e delírio dos clientes do bar onde ela trabalha. Mas quando chega a casa, vai dar com elas a fazer malha e a bordar no sofá, quando temia apanhá-las a fazer algo um pouco mais excitante.
"Gosto de sublinhar o facto de que os seres humanos tendem a ser os verdadeiros monstros. Basta ler um jornal para perceber isso. E acho que os vampiros representam apenas a nossa parte mais selvagem, a pior parte de nós próprios", atira a autora, para quem o sobrenatural dos livros parece mesmo ser mais um divertimento do que o objectivo principal da história. O seu público não é o dos adolescentes de Crepúsculo (Twilight, a série de livros de Stephanie Meyer que deu origem a uma popular saga cinematográfica) definitivamente: "Oh, não, eu escrevo para um público mais velho."
E qual é o seu público, Charlaine? "Tenho sessões de autógrafos em que vêm três gerações, a filha, a mãe e a avó. Ou o neto, porque os meus livros atraem um grande leque de idades. Tenho uma fotografia de uma senhora de 102 anos a ler um dos meus livros! E tenho alguns fãs jovens, provavelmente jovens de mais para ler os meus livros... Os meus livros são sobre temas de adultos, e não gosto de ver jovens com 13 ou 14 anos a lê-los."
A mãe de três rapazes e uma rapariga entra aqui em força, sobrepõe-se à autora de sucesso que escreve cenas de sexo escaldante com vampiros. Os seus filhos (que hoje têm 25, 22 e 19 anos), que ela menciona sempre no fim ou no início dos livros, o que acham do que a mãe escreve? "Eles acham óptimo. Gostam da série de televisão [que em Portugal passa no Mov às quintas-feiras], mas só um é que leu os livros - o que está bem para mim, não os vou forçar a ler-me. E estão todos muito felizes por a mamã estar a ganhar tanto dinheiro!", diz com uma das suas habituais gargalhadas.
Magnólia contente
A sua maneira de contar histórias, misturando cenas de sexo da protagonista (menos do que na série, note-se), verdadeiras batalhas com vários tipos de seres sobrenaturais e as suas intrigas, tudo mais ou menos situado no Sul dos Estados Unidos (embora com algumas viagens pelo meio), viciou rapidamente nos seus livros o argumentista Alan Ball (que esteve por trás da série de televisão Sete Palmos de Terra e do filme Beleza Americana, por exemplo). Ele é que está por trás da adaptação dos livros de Charlaine Harris para televisão. Introduziu novas personagens, alargou o papel de outras, divagou no universo da escritora - mas parece permanecer fiel ao seu espírito.
"Fiquei muito contente quando fui contactada pelo Alan, mas tinha outras ofertas na altura, tive de decidir qual escolher. Claro que Alan tem tanto talento, gostava tanto dele que foi fácil. Tinha visto o seu trabalho. É mesmo um g? nio, acho que tive a melhor experiência de adaptação que um escritor pode ter", diz Charlaine Harris. Mesmo com as novas personagens, os novos desenvolvimentos da história? "Sim, o Alan tinha-me preparado para isso, tem um grupo talentoso de escritores a trabalhar com ele, tinha-me dito que queria fazer algumas coisas novas. Sinto-me bem com isso."
E em Magnólia, a pequena cidade onde vive Charlaine Harris, as pessoas sentem-se bem com ela? Olham para ela pelo cantinho do olho, cochicham, dizem: "Ali vai aquela que escreve livros sobre vampiros"? "Não, vivo lá há muito tempo, há 20 anos, e na verdade lidaram com isto muito melhor do que eu esperava. Têm reagido com uma atitude do género: "Que bom que tem tido tanto sucesso", "que bom que alguém da nossa cidade conseguiu ter tanto sucesso"..."
Não se pode deixar de pensar que esta senhora que tem todo o ar de uma dona de casa tradicional - que absolutamente não escreve histórias de sexo escaldante com vampiros vikings ou soldados do Exército sulista da Guerra da Secessão da América - tem algo de subversivo. Veja-se, por exemplo, como ela escreve sobre as fadas - que podem ser seres belos e luminosos, mas quanto a serem bondosos... "Não, não. Nos meus livros, não! Não vêm de uma base cristã, da fé cristã a partir da qual a maior parte das pessoas funciona. Vêm de tempos mais antigos, é muito interessante escrever sobre eles", diz.
E, no entanto, esta é uma mulher activa na sua igreja local, envolvida na sua comunidade. Já foi criticada por causa das coisas que escreve? "Não. Não vejo problema nenhum, já me perguntaram isso. Estou a escrever ficção, não factos. Escrevo para entreter as pessoas. Pensei nisso muito seriamente, mas, quando tive cartas de pessoas a dizer-me que as tinha ajudado a ultrapassar um período difícil nas suas vidas - que quando a sua mãe estava a morrer os meus livros aliviaram o seu coração, por exemplo -, achei que o que estava a fazer era correcto."
Sookie Stackhouse, afinal, é uma rapariga de bom coração, sempre pronta a ajudar o próximo. É assim que as suas aventuras começam, é assim que conhece o vampiro Bill Compton. E todas as personagens de Charlaine Harris têm algo dela. Foi a própria que o disse.

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