A presença do passado sexy

Figura dominadora e um pouco terrible, Rem Koolhaas fez da 14.ª Bienal de Arquitectura de Veneza um olhar sobre os últimos cem anos que só na aparência é retrospectivo. A História, aqui, ainda mexe

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A figura de Rem Koolhaas impera sobre a 14.ª Bienal de Arquitectura de Veneza. Não só porque é uma figura dominadora, mas porque os arquitectos estão ávidos de respostas de um hipotético último guru. Koolhaas alimenta-se de contradições: é um star-architect que fala de “transgressão” como se estivesse fora do sistema; publicou um “manifesto retrospectivo” sobre Nova Iorque em 1978 com referências ao construtivismo russo, como se estivesse dos dois lados da Guerra Fria; projectou um “ícone” em Pequim (o edifício CCTV) que integra numa imagem de uma cidade árabe no deserto, um dos horrores do nosso tempo; é atraído pelo “genérico” em arquitectura e organiza “maratonas” de debates para discutir o mundo.

O tema da Bienal que há uma semana começou, Fundamentals, além de ir ao encontro da orfandade que os arquitectos fazem questão de sentir, é também uma tentativa de fazer sentido das suas próprias contradições. Talvez inevitavelmente, no entanto, a Bienal funciona melhor quando Koolhaas lança o fogo, como é o caso da Itália desconstruída de Monditalia, no Arsenal, do que quando o tenta apagar, como é o caso de Elements of Architecture, nos Giardini. Em Monditalia, a cacofonia e o delírio funcionam a favor da desmontagem de uma cultura rica, complexa e contraditória, como é a italiana; a mesma cacofonia impede que Elements of Architecture tenha qualquer racionalidade back to basics, sentido pedagógico e clarificador, por mais elementares que sejam os temas — “paredes”, “tectos” e “corredores” — e a sua correspondente difusão em merchandising.

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Em Monditalia, a cacofonia e o delírio funcionam a favor da desmontagem de uma cultura rica, complexa e contraditória, como é a italiana

A expectativa é que Koolhaas, sendo um dos arquitectos que espalharam a doença, tenha também a cura. O apelo “coral” que fez às representações nacionais no sentido de reflectirem o modo como os vários países “absorveram a modernidade”, entre 1914 e 2014 foi levado a sério pela generalidade dos participantes. As diversas exposições de Absorbing Modernity têm propostas curatoriais de alto nível, colocando, às vezes de modo quase comovente, a arquitectura como centro ou charneira de questões políticas e visuais, artísticas e técnicas. O resultado é um evidente elogio à arquitectura, à sua história, aos seus desvios, fetiches, megalomanias, projectos falhados e conquistas. Absorbing Modernity prova também como as exposições de história podem lidar bem com o efémero e o acidental, e como a fotografia e o cinema, mesmo quando não são explicitamente “arquitectónicos”, desdramatizam a tecnicidade e prolongam a vida da arquitectura.

Por mais “fundamentos” que queira evocar, é também patente que Koolhaas nunca abandona uma abordagem trash, suja, jornalística. É através da informação (ou data) e da cultura pop que dialoga com a arquitectura. Não consegue livrar-se do vírus que, no senso comum mas também no senso crítico, contamina o nosso tempo: a plasticidade e a voracidade do plástico. Talvez se possa desculpar este lugar-comum: naquilo que diz respeito mais proximamente a Koolhaas, Fundamentals é “apagar o fogo com gasolina”.

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A expectativa é que Koolhaas, sendo um dos arquitectos que espalharam a doença, tenha também a cura Manuel Roberto

O que não significa que seja ingloriosa esta pironomia. E a espaços, respira-se. A espantosa exposição Innesti/Grafting, no Pavilhão de Itália, comissariada por Cino Zucchi, particularmente o módulo relativo a “Milão, como laboratório do moderno”, mostra o que já se sabia mas ainda assim tem um impacto extraordinário: Milão como o centro sem paralelo de experiências modernas, historicistas, transgressoras, dramáticas.

Grandes momentos

A Clockwork Jerusalem, no pavilhão do Reino Unido, comissariada por Sam Jacob e Wouter Vanstiphout, é outro dos grande momentos da Bienal. O complexo pressuposto curatorial, em que o poema Jerusalem, de William Blake, colide com a mítica Laranja Mecânica de Stanley Kubrick, refere-se ao modo como, no Reino Unido, a modernidade integra tradições românticas e pastorais, como é o caso da “Cidade Jardim” de Ebenezer Howard, mas também se pode envolver livremente com a ficção cientifica, como acontece com os Archigram. Lidando com o historicismo e o futurismo como partes da mesma cultura, A Clockwork Jerusalem escapa à vulgata high-tech da arquitectura corporativa que hoje se constrói em Londres. De resto, é tão elaborada como proposta teórica, como eficaz visual e graficamente. Cruzando Joy Division e Cliff Richard com as New Towns de Hulme, Cumbernauld ou Milton Keynes, idealizando um “pitoresco de betão”, remetendo para as possibilidades “tecno-pastorais” de Reyner Banham, a exposição do Reino Unido mostra-nos uma “modernidade absorvida” olhando para a frente e para trás.

Fair Enough, a exposição da Rússia patente no pavilhão desenhado por Aleksey Shchusev, que projectou também o túmulo de Lenine, é a revelação da Bienal. Comissariada pelo Streika Institute of Moscow assume o formato de uma feira comercial, com os seus compenetrados vendedores e linguagem publicitária, distribuindo temas e figuras da vanguarda e do tradicionalismo russo. Uma agência de viagens propõe-nos que visitemos arquitectura soviética em Londres, Cuba ou na Mongólia; a mítica escola de arquitectura Vkuthemas é transformada num espaço criativo; uma cruz suprematista de Malevich em molde para construção; o mítico edifício Narkomfin, de Moisei Ginzburg, adaptável para prisão, residências ou escritórios.

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Irónica, a exposição da Rússia assume o formato de uma feira comercial, com os seus compenetrados vendedores AFP

Particularmente nestas três exposições, a Bienal mostra-nos como a História nos pode ferir hoje; como a investigação pode ter uma componente popular; e como a arquitectura pode ser central no pensamento sobre a cultura dos povos.

Koolhaas e os outros

Mas Absorbing Modernity não vive só dos países mais centrais ou ocidentais. Os de Leste, o mundo árabe e o africano também se fazem sentir. A exposição do Bahrein propõe um levantamento da arquitectura do mundo árabe entre 1914-2014, num livro distribuído gratuitamente que se pode consultar em gigantesca mesa redonda. A exposição de Marrocos, Fundamental(ism)s, mostra-nos, em maquetas de efeito expressivo, projectos do passado e do futuro. No pavilhão nórdico, Forms of freedom: African independence and nordic models mostra-nos a cooperação da Finlândia, da Suécia e da Noruega com a Zâmbia, a Tanzânia e o Quénia, após as respectivas independências.

No conjunto, a impressão forte que fica é um call to arms para um combate particular que é a arquitectura. As bombas em Milão nos anos 1970, no Pavilhão de Itália, o Fun Palace de Cedric Price, no Pavilhão Suíco, o percurso de Jacob Bakema, no Pavilhão da Holanda, são recordatórios de uma história que ainda interpela, que ainda se move.

Ironicamente, poderíamos dizer que o lema “architecture not architects”, emblemático desta Bienal, significa que o único arquitecto para que há espaço é o próprio Koolhaas. Mas deve-se a Koolhaas um tão forte compromisso curatorial do conjunto das exposições que, sem atingir a coralidade desejada, cria um impressivo quadro de reflexões, provocações e documentos. Koolhaas pode ter dito em tempos “fuck context”. Mas, sem nostalgia ou burocraticamente, o contexto está por todo o lado em Veneza. É A Presença do Passado, o lema da primeira Bienal, em modo acelerado, anárquico e sexy.

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