Intendente a mudança em marcha

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Daniel Rocha

Há dez anos o Intendente era um buraco negro no centro de Lisboa. Edifícios em ruína, droga, roubos, prostituição. Entretanto, a palavra gentrificação entrou no vocabulário português. E agora pode estar a nascer aqui o Bairro Alto do século XXI

São três da tarde de segunda-feira, mas, na Rua dos Anjos, o dia não difere muito da noite. Junto ao gabinete de António Costa, no mundo já limpo do Largo do Intendente, é virar à esquerda. De repente, por todo o lado areia, grades de arame, maquinaria, passeios revolvidos, calçada levantada, pintura em curso nas fachadas - um estaleiro de obras. É a mudança em curso. E, no meio do pó, o que à força de mudar voltou ao início: prostituição de rua à antiga portuguesa, homens a fumar pelas soleiras e minúsculos bares de alterne já de porta aberta, a servir bebidas, com a música a sair porta fora e as televisões ligadas lá dentro. Tanto na Rua dos Anjos como na Rua do Benformoso, na direcção oposta, rumo ao Martim Moniz, há pelo me- nos uma televisão por bar, quando não duas. E isso acabou por se tornar no elemento estruturante do projecto que os artistas plásticos João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira foram convidados pela Red Bull a desenvolver para a zona. Este será o segundo ano em que a marca assume o leme das comemorações do dia de Santo António nesta zona. Chamaram-lhe O Santo Vertical - uma festa para a noite de dia 12 com música ao vivo pelas varandas dos edifícios do Largo e, como anfitriãs, as actrizes Cláudia Jardim e Joana Barrios, da companhia Teatro Praga. A preparar o crescendo, uma semana antes, já a partir da próxima quinta-feira, inaugura Intendente, o projecto de comissariado para o qual João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira convidaram 11 artistas e colectivos a expor nos antigos bares da zona. Vasco Araújo, João Onofre, Gabriel Abrantes, Mauro Cerqueira, Francisco Queirós, Tiago Alexandre, Diogo Evangelista, Miguel Faro, D.A.E.S, o jovem grupo de teatro Silly Season e o colectivo Rabbit Hole - por uma semana, dia e noite, trabalhos em suporte videográfico assinados por estes nomes estarão a passar nos monitores dos bares que constituíram em tempos uma das âncoras da vida da zona. Uma vida anterior a Fevereiro de 1999, quando a Câmara Municipal de Lisboa, então presidida por João Soares, deu por concluído o projecto de realojamento de 248 famílias que antes viviam no bairro do Casal Ventoso. Nesse momento, Lisboa dava por encerradas as portas de um hipermercado de estupefacientes por onde, a partir de final dos anos 1980 e durante a década de 1990, se estima que, diariamente, mais de cinco mil pessoas circulassem para comprar e consumir cocaína e heroína. Cinco mil: sensivelmente o mesmo número de pessoas que, com o fim do Casal Ventoso, se estima que tenham atravessado a cidade passando a circular diariamente pelo Intendente. À época, o Largo era um terreiro delapidado que servia de parque de estacionamento - ligeiros, mas também os pesados de empresas de camionagem e mudanças. Lá pelo meio, onde antes havia pouco mais do que a prostituição tradicional e a base da pirâmide da imigração não-documentada, passou a haver também centenas de novos toxico-dependentes. Vanda Ramalho, assistente social e professora universitária, chegou pouco depois, em 2004. Aos 24 anos, tinha acabado o curso e começado a estagiar na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, nos Anjos. Decidiu ir viver para a Almirante Reis, pouco acima do Largo, no mesmo apartamento onde ainda mora. “Quando cheguei, a zona era considerada perigosa. Apesar de contactar com aquelas realidades fazer parte do meu trabalho, eu própria tinha medo de passar em certas zonas”, recorda. Os primeiros passos de recuperação deram-se em 2008, com a câmara a começar a colaborar com associações locais ligadas a programas de reabilitação de toxicodependentes. Três anos depois, em 2011, António Costa decidiu mudar o seu gabinete para um dos edifícios da antiga fábrica de cerâmicas Viúva Lamego. No edifício contíguo, apoiou ainda a instalação das Largo Residências, com um programa de criação artística, um hostel e, no piso térreo, o Largo Café Estúdio, com espaço para apresentação informal de pequenas propostas de teatro, dança e lançamento de livros. Mais recentemente, ao lado, inaugurou também a maior das lojas A Vida Portuguesa, de Catarina Portas. E, entretanto, aos poucos, o Largo do Intendente transformou-se numa praça ampla e luminosa de calçada e lioz, com gente a tomar café em esplanadas, uma peça da artista plástica Joana Vasconcelos ao centro e uma fonte antiga em pano de fundo. A mesma fonte que, antes, Vanda Ramalho diz que nem sabia existir ali.

Tal como muitos dos novos moradores que nos últimos anos se mudaram para a zona em busca de rendas acessíveis junto ao centro da cidade e que, pela manhã, descem a Almirante Reis de bicicleta e skate e fazem compras nas mercearias chinesas, indianas e paquistanesas, hoje Vanda frequenta o Largo bem como a Casa Independente, o maior espaço da nova noite da zona.

Paredes meias com o antigo Sport Clube Intendente — que começou também a ter novos clientes e festas —, a Casa Independente é um multifunções dentro de um antigo edifício apalaçado, hoje com uma zona de bar, sala de refeições, sala de dança e uma esplanada interior. Para além da sua actividade normal, com uma programação de DJ e concertos, acolhe também iniciativas como o mercado de segundas-feiras da Cooperativa Fruta Feia, que tem como lema “gente bonita come fruta feia”. A cooperativa arrancou em finais de 2013 como forma de com- bate ao desperdício alimentar motivado pelos actuais padrões de consumo, que recusam produtos fora de determinados cânones estéticos — de formato, cor, calibre... — e que levam a um desperdício de cerca de 30% de toda a produção de frutas, vegetais e legumes. Em todo o mundo, são milhões e milhões de toneladas anuais de alimentos em perfeitas condições de consumo e cuja produção envolveu custos ambientais elevados. Segundo a Fruta Feia, em apenas seis meses de existência foram já mais de 25 toneladas de alimentos canalizados para este mercado alternativo hoje com 420 consumidores associados.

O posicionamento é tanto ético como político — a escolha de um estilo de vida à margem de lógicas vistas como destrutivas de valores fundamentais. E são mais pessoas a atravessar frequentemente o Largo. Tal como as que sobem até à Cozinha Popular da Mouraria, um projecto da fotógrafa Adriana Freire localizado algumas ruas acima da também recentemente inaugurada Casa da Severa, de Camané, e onde a moldura é horizontal e inclusiva — todos iguais: provam-se pratos de chefs convidados tanto quanto de moradores do bairro, e toda a gente ajuda a cozinhar e a limpar (incluindo os que pagam).

Gentrificação?

A Mouraria envolve o Intendente. Por cima. Até lá, a partir do Largo, um dos caminhos é a Rua do Benformoso, onde fica a maioria dos bares ocupados pelos artistas que integram o projecto de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira. É uma réplica em maior escala da Rua dos Anjos, mas onde o Portugal antigo se faz cada vez mais multicultural à medida que nos aproximamos do Martim Moniz: talhos e mini- mercados halal, lojas de bijuteria chinesa, cabeleireiros afro... Passaram por aqui muitos dos que há um ano fizeram o percurso do NOOR- Mouraria Light Walk, mais uma iniciativa camarária para a abertura e dinamização da zona. Entregue ao Ebano Collective, esse percurso envolveu trabalhos de dez artistas em que a luz era assumida como símbolo de uma chamada de atenção sobre o trabalho de recuperação já feito na zona mas também sobre “as camadas mais invisíveis do bairro, em colaboração o mais estreita possível com os moradores”, explica Vítor Barros.

No total, as três noites do Light Walk terão chamado cerca de dez mil pessoas, entre elas “muitos lisboetas que por ali não passavam desde a infância”, diz Chiara Pusseti, também do colectivo. Especializada em antropologia cultural, a investigadora sénior do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, recorda como, há alguns anos, quando viveu na Mouraria, “era convidada pelos amigos e até pelos vizinhos a não andar sozinha à noite”. Haveria algum risco real, reconhece. Mas acha que, provavelmente, mais do que ele pesaria “o medo do desconhecido, do novo”.

É que “gentrificação” não é um termo que tenha entrado há muito no vocabulário português. Em capitais maiores e mais dinâmicas, como Nova Iorque, Londres, Paris ou Berlim, com populações jovens e flutuantes muito maiores do que Lisboa, os fenómenos ligados à ocupação de zonas degradadas do casco urbano por novas faixas populacionais há muito fazem parte identificada e estudada da economia das cidades. Portugal, onde até ao fim da ditadura praticamente não existia mobilidade social, só há pouco saiu também de uma lógica atávica em que várias gerações de uma família nasciam e morriam numa mesma casa ou num mesmo bairro.

Em Lisboa, o Bairro Alto foi o primeiro grande caso de uma lógica de gentrificação contemporânea. Um processo em grande parte espoletado de forma espontânea pela inauguração, em 1982, dessa utopia nocturna chamada Frágil, o bar-discoteca que seria o ponto fulcral de irradiação de uma Lisboa cosmopolita, democrática e aberta. Foi toda uma década até, em princípio dos anos 1990, o Bairro começar a ser assumido de forma consistente como zona residencial por uma nova faixa de população, parte da qual ligada às escolas de teatro, dança e música do Conservatório Nacional. Depois, foi quase outra década até, com a abertura da nova estação de metro da Baixa-Chiado, em 1998, o Bairro se ver invadido de forma massiva como pólo de diversão nocturna. Sem qualquer plano de desenvolvimento sustentado, foi nessa altura que o valor do imobiliário na zona começou a disparar — quase ao mesmo tempo, porém, que a zona se tornava cada vez menos habitável devido à poluição sonora de um número insustentável de bares e à falta de infra-estruturas sanitárias para acolher um volume esmagador de visitantes nocturnos.

Foi o fim da maior parte do comércio tradicional e mesmo de uma parte do novo comércio que entretanto se instalara na zona. Foi o momento, também, do verdadeiro desaparecimento dos moradores tradicionais, muitos dos quais dando vez a prédios inteiros de alugueres temporários a turistas.

Questões de vizinhança

Em menor escala, seria o que aconteceria pouco depois também nas zonas adjacentes da Bica e do Cais do Sodré, o corredor nocturno que acabou por ligar o topo da colina à zona ribeirinha. E isto é o que preocupa muitos dos intervenientes mais alerta da zona do Intendente.

Com a jornalista Carla Isidoro, Vanda Ramalho é hoje uma das impulsionadoras do projecto Moradores da Avenida Almirante Reis, um grupo com sede no Facebook e ligado ao projecto internacional Social Street, que visa criar elos entre habitantes da uma mesma rua para que se conheçam e sociabilizem, criando uma rede de vizinhança e aumentando a confiança na sua zona de residência. Visitas guiadas sobre a história do bairro, concursos de fotografia, jogos de futebol de rua e também um sistema de dinâmica social de entreajuda: troca de apoio de babysitting, apoio informático gratuito, oferta de transportes, descontos no comércio e na restauração local...

Criado já este ano, o grupo junta neste momento 98 moradores. Como aconteceu noutros países, Vanda Ramalho espera que consolide uma lógica de vida comunitária em geral ausente nas grandes cidades, sobretudo em avenidas largas como a Almirante Reis. Idealmente, seria também uma estratégia de sensibilização para a necessidade de manter a zona polissémica e ecléctica, sem que novos moradores anónimos hostilizem e afastem moradores tradicionais. Isso começa a notar-se, diz Vanda Ramalho. Começa a notar-se, por exemplo, numa série de prédios que, nos últimos anos, gradearam as suas arcadas térreas como forma de afastar os sem-abrigo que há muito pernoitam na zona.

“Não se devem fazer políticas de afastamento de trabalho sexual, por exemplo. Não se devem adoptar nunca políticas de limpeza. [Em qualquer processo de requalificação] é preciso haver um controlo [de cima para baixo] para que não existam falhas éticas. Não devemos tornar invisíveis as diferentes realidades sociais que compõem a cidade.” A diversidade é, precisamente, o que torna qualquer zona realmente interessante e apelativa. E, para que a diversidade subsista, “é preciso que a câmara continue presente”, argumenta Vanda: “Vai ter de partir do poder local a criação de medidas de apoio a idosos e de incentivo à habitação de baixo custo para combater os fenómenos de mercado mais niveladores.” Chiara Pusseti, que é italiana, dá como exemplo a estratégia seguida pela câmara da sua cidade natal. Em Turim, o projecto de requalificação do centro, que se transformou radicalmente nos últimos 20 anos, foi, precisamente, “mostrar a presença estrangeira na cidade”: “Foram feitos acordos especiais para manter as rendas de bares, restaurantes e habitação de imigrantes... Vamos ver o que acontece em Lisboa. As consequências daquilo a que chamamos gentrificação têm sempre a ver com o projecto que é lançado de cima para baixo.” É o que diz também Lucinda Correia, da Artéria, um atelier de arquitectura onde trabalha em parceria com Ana Jara e cujo lema é “humanizar a arquitectura”. Entre os representantes oficiais deste ano na Bienal de Arquitectura de Veneza, a Artéria está desde 2011 envolvida na reabilitação do Intendente e tem atelier não longe, na Rua da Madalena. “A requalificação física não chega, sobretudo quando não envolve os que habitam o espaço”, nota Lucinda. Em Outubro, o atelier terá um projecto de parceria com o comér- cio local. Neste momento, diz a arquitecta, a grande preocupação dos lojistas tradicionais é “perceber como é que vão conseguir ficar ali com todas as mudanças” em curso: “Aconteceu também com o Cais do Sodré, que começou a ter muita força mas escorraçou muitas pessoas. Corre-se sempre esse risco, mas não deve acontecer. A câmara terá de assegurar que há um conjunto de pessoas que devem poder coabitar com os novos projectos.” Apesar de terem acabado de contactar pela primeira vez com a zona, estas foram algumas das questões intuídas por João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira. Na Casa Independente, por exemplo, apresentam um trabalho de Mauro Cerqueira feito no Porto numa zona a passar por um processo semelhante - o artista filmou um sem-abrigo alcoólico; no Intendente, o registo do dia de mendicidade desse homem estará no interior de um dos novos espaços vedados a essa faixa populacional.

 

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