Um artista inteiro

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Daniel Rocha

São mais de 100 peças numa exposição que percorre 25 anos. O Peso do Paraíso é a primeira retrospectiva de Rui Chafes em Portugal. Ele, que tinha 26 anos quando o disseram um génio, tem agora 47. E pede tempo — quer que esperemos para ver o que faz aos 100. Há artistas assim, completos. São poucos

1.

Surgem de repente no nosso campo de visão, como um exército — uma sucessão de estelas altas, imponentes, hieráticas.

O silêncio é profundo. A imobilidade total. A rigidez extrema. No entanto, algures, pressente-se o pulsar de qualquer coisa, o mistério de um sussurro, uma vibração, uma vida interior que se insinua mas nos escapa.

Lições de Trevas é a mais longa das séries de Rui Chafes — pela primeira vez reunida cá, depois de anos a circular internacionalmente. Uma sequência de falsos monólitos em ferro catalogados de I a XXV e datados de 1992 a 2002. Na superfície plana com que nos recebem apresentam filas simétricas de orifícios circulares que atraem e puxam o olhar, deixando entrever qualquer coisa, não mais do que um pressentimento. Na face anterior, no entanto, abrem-se subitamente, revelando um oco interior ocupado por formas — presenças indizíveis, como se procurassem mostrar um lado oculto de qualquer coisa, escreveu um dia Doris von Drathen. São imperativos, magnéticos. Fendem o espaço. Dizem ao que vamos logo à entrada de O Peso do Paraíso, a primeira retrospectiva de Chafes em Portugal.

Mais de 100 obras instaladas entre o Centro de Arte Moderna (CAM) e os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, nas salas e entre maciços de verde, junto aos lagos e a atravessar janelas. Um percurso de 25 anos de produção: seria o momento de olhar para trás e começar a compor, por fim, qualquer coisa que se aproximasse de um retrato definitivo — não se desse o caso de alguns artistas nascerem já completos, inteiros, e de retrato tirado.

“Este homem é um génio”, titulou a revista K em 1992, a data do primeiro dos monólitos das Lições de Trevas — uma pedra sobre o assunto tinha ele 26 anos. Hoje tem 47 e continua a insistir na recusa: “Vinte e cinco anos não é nada, ainda só estou a começar. Comecei ontem, fiz ontem a primeira escultura. Ainda é cedo para olhar.”

Muito cedo: “Espero começar a compreender o que fiz (e o que faço) quando tiver 80 anos. Ou mais. Parece que o Hokusai, o grande mestre japonês, também tinha esta mesma consciência: ele dizia que tudo o que tinha produzido antes dos 70 anos não era digno de atenção. Aos 75 teria começado a aprender algumas coisas, aos 80 teria feito alguns progressos, aos 90 teria penetrado no mistério das coisas, aos 100 teria alcançado uma etapa maravilhosa e aos 110 tudo o que faria, fosse um ponto ou uma linha, estaria vivo. É assim que eu penso também.”

Faz sentido. No entanto, aqui estamos, frente às Lições de Trevas — são pouco mais do que superfícies, linhas e pontos, mas estão vivas e pulsam; cumprem já a profecia do mistério revelado, essa “etapa maravilhosa” por que deveríamos ainda esperar. Seria lá à frente, num virar de tempo distante. Mas afinal o que é o tempo se não um fio que esticamos e dobramos, sempre à nossa medida, passado, presente e futuro a encontrarem-se e desencontrarem-se nesta vertigem que somos nós, aqui e agora, uma e outra vez... Chafes sabe isso como ninguém. Foi ele quem disse: “Nasci em 1266, numa pequena aldeia que já não existe, na Francónia, Baviera.”

2.

Foi em 2011, numa conferência na Universidade de Lisboa. Sentou-se e começou a ler a história da sua vida, desde o princípio. Autobiografou-se a atravessar séculos, até hoje, sempre a trabalhar em ateliers de escultura.

Com Tilman Riemenschneider, com Jean Juste, com Bernini, com Philip Otto Runge — no fundo, todos escolhemos os nossos mestres; ele escolheu estes. Ou então, como disse Dante, são os mestres que nos escolhem a nós e estes escolheram-no a ele. No caso, vai dar ao mesmo: a respiração de um artista que verga a coluna vertebral da História para instituir um contratempo e um contramundo — a especificidade de que surge o pulsar da sua obra, a vida interior que encontramos nas suas esculturas e nos seus desenhos.

Isabel Carlos, que assina a curadoria de O Peso do Paraíso, escreveu-o no texto do catálogo e di-lo também de viva voz: “Esta exposição traz-nos a afirmação de um artista incontornável e profundamente autoral. Quando vemos um Rui Chafes, sabemos que só pode ser um Rui Chafes. É um universo próprio, inconfundível.”

Fala também numa consistência e numa coerência raras: “Porque o que é extraordinário na obra dele é a completa identificação entre pensamento e acção. As referências, sejam literárias ou filosóficas, tudo o que ele escreveu e traduziu faz redondo, faz círculo com o seu trabalho escultórico.”

Chafes foca tudo aí também, na escultura. Sem concessões: “Obviamente, é uma paixão. Uma paixão por uma coisa que me resiste, me oferece resistência, se defende de mim. É a única maneira de me relacionar com o Mundo de uma forma em que eu possa acreditar. Por outras palavras, a única maneira válida de eu me relacionar com o Mundo. Não conheço outra.”

3.

Primeiro e sempre a escultura, então. E as esculturas de Rui Chafes dividem-se em dois grandes tipos: as mais geométricas e as mais orgânicas.

As mais geométricas partem de um projecto absolutamente cerebral e nascem de um processo de realização técnico, primeiro em desenho, depois em ferro. São geralmente executadas por outros, em oficina. Já as mais orgânicas, de atelier, nascem elas mesmas como desenhos que o artista executa directa e pessoalmente sobre o ferro em operações intuitivas de corte, moldagem e soldagem, numa espécie de intuição musical. São aquilo que ele afirma como “a possível concretização de um desenho no espaço”. Não por acaso são as formalmente mais próximas do traço fluido e indagatório da sua obra sobre papel, o resultado de uma prática quase diária que Chafes mantém desde o início, mas que — também não por acaso — deixou praticamente na sombra até há menos de quatro anos ter começado a expô-la.

“O desenho é sempre uma confissão. É talvez a actividade mais íntima de um artista. Pelo menos, para mim, é a minha produção mais íntima, é a única parte do meu trabalho que é, realmente, pessoal”, diz.

Até 2010, com Khora, na Fundação Carmona e Costa, o desenho estava em gavetas, publicado em livros ou nas mãos de amigos. Fora das paredes públicas. E fora do mercado. “Tenho muita dificuldade em vender um desenho. Não tenho qualquer problema em oferecer um gesto íntimo, mas tenho a maior dificuldade íntima em vendê-lo. É uma questão de pudor. O desenho é tão íntimo como a escrita manuscrita, é uma confissão, um diário. Ninguém vende um diário íntimo, acho eu. A escultura não é íntima, é um processo técnico. Mesmo quando é realizada por mim, tem uma qualidade industrial. Existe um espaço entre mim e a realização de uma escultura que não existe nem no desenho nem na escrita. Não vejo o desenho como uma arte, vejo-o como uma confissão.”

Está lá tudo, de facto.

Um desenho qualquer, ao acaso: traço fluido e ligeiro, a arriscar por vezes a invisibilidade, em constante metamorfose; uma organicidade quase sempre misteriosa e híbrida, fundindo o humano e o vegetal, entretecendo o que tem forma e o informe, o sólido e o viscoso. Mesmo quando a figuração se faz mais declarada, há sempre fragmentos que se fundem noutros — partes de desenhos anatómicos, com vísceras, pedaços de ilustração botânica, tudo fantasticamente entretecido, a terminar no vazio ou a correr eternamente de volta ao início. Seguem uma lógica de transgressão formal à primeira vista muito distinta das linhas puras das esculturas mais geométricas e angulares, cheias de arestas cortantes. No entanto...

Hubertus Gassner relacionaria a linha fluente do desenho de Chafes com aspectos da doutrina da natureza de Novalis, que une o universo dos minerais, das plantas, dos animais, dos seres humanos e o mundo transcendente do Numinoso. Uma concordância estilística que Manuel Castro Caldas desmontaria como uma “fluência imposta, que nos afasta da coisa reconhecida”: “Por isso é tão intensa [...] a impressão de um esoterismo da forma, como se tudo se tivesse passado antes do olhar, não podendo coincidir com ele. A invisibilidade é afinal [...] um esforço para dizer a verdade. A expressão é intimada a retirar-se, a não se mostrar senão como retirando-se, deixando ver o que acaba de nos abandonar.”

É outra forma de dizer o que escreveram Worringer e Deleuze ao falar na “expressividade superorgânica” da linha da arte gótica, opondo-a ao carácter da arte clássica: “A linha gótica é antes de tudo decorativa, de superfície, mas é uma decoração material, que não configura forma alguma; [...] eleva as forças mecânicas à intuição sensível, procede por movimento violento. E se ela encontra o animal, se ela se torna animalesca, não é delineando uma forma, mas, ao contrário, impondo [...] uma zona de indiscernibilidade das formas. Portanto, ela é testemunha de uma alta espiritualidade, pois é uma vontade espiritual que a leva para fora do orgânico em busca de forças elementares. [...] Essa espiritualidade é a do corpo: o espírito é o corpo.”

É aqui, nesta transparência ou excesso de clareza, numa espiritualidade que encara o corpo como centro, que encontramos o carácter do desenho de Rui Chafes. E, com ele, o carácter das suas esculturas. Todas, sejam as mais orgânicas ou as mais geométricas.

Com a sua aura de anacronismo antigo, todas vivem de um misto de erotismo e belicismo, de sensualidade e violência, todas se afiguram melancólicas, mas também extáticas, precisas e imprecisas, vagas e concretas, secretistas, fantásticas, inquietantes, subversivas, anticlássicas e anti-racionalistas, individualistas, idealizadas e idealistas. Muitas sugerem prisões, mas também sempre a possibilidade de uma liberdade absoluta para o humano. Chafes já as descreveu como momentos “de vida triunfante, na qual tudo, tanto o bem como o mal, se encontra igualmente divinizado”.

“Momentos de vida triunfante” — será por isso que parecem muitas vezes deslocadas quando vistas em museus ou galerias. Trazem mais naturalmente com elas a ressonância de igrejas, jardins, florestas, montanhas, falésias e praias — é esse o mundo que ressoa em muitas das obras agora no CAM, como se os templos e as paisagens lhes pertencessem por natureza, e vice-versa, reciprocamente.

4.

Chafes diz pensar isto muitas vezes: “Os museus, as galerias (o white cube) são os hospitais, as clínicas, construídas para acolher as obras de arte doentes.”

Não foi sempre assim. “Noutro tempo, as obras nasciam e viviam no seu espaço, no seu território, no local para onde tinham sido pensadas e realizadas, esses espaços onde tinham uma função (por vezes divina, outras vezes puramente utópica) no meio dos homens, nos locais que eram frequentados por homens e mulheres à procura de uma voz: as igrejas, os templos, a Natureza, a paisagem.... Hoje a maior parte da arte é constituída por objectos órfãos, que não têm onde cair mortos, que andam de mão em mão até acabarem colocados numa redoma de vidro, ou no lixo.”

Sim, há um profundo lamento aqui por estes “pobres objectos órfãos”, por esta “pobre arte que perdeu o seu lugar criador de sentido”: “Como o Modernismo deixou de acreditar nessa relação essencial entre lugar, sentido e obra de arte, criou-se este espaço branco, asséptico e neutro, onde ficamos felizes por acreditar que foram criadas as ‘condições ideais’ (de luz e espaço) para ‘usufruir de uma obra de arte’. Uma espécie de visão agnóstica e pura da intenção artística. É um trauma do Modernismo. Eu, pessoalmente, desconfio muito dessas noções de neutralidade e espaço asséptico, desconfio muito que sejam essas as condições ideais. Nunca foram. O espaço da igreja ou do templo, por exemplo, é o espaço onde as obras de arte sempre encontraram o seu território, o seu lugar onde se criava sentido, criando precisamente relações não apenas com a arquitectura do edifício, mas também com a arquitectura do coração, da alma, da memória, do medo, da esperança, do silêncio e recolhimento das pessoas. É nesse espaço, que não é de todo neutro, que as obras de arte que me interessam sempre viveram.”

5.

Nada de novo. Em 1995 Chafes fez para a Assírio & Alvim um livro a ler desde logo como gesto-revelação, o abrir da cortina sobre os fundamentos teóricos da sua obra. Intitulado Würzburg Bolton Landing, este “objecto de paixão” é uma antologia de textos que o próprio assinala como incontornáveis para a compreensão das suas motivações e premissas enquanto artista. Textos fundadores de uma obra em que pensamento e fazer artístico são encarados como uma e a mesma coisa e em que cada escultura é vista como não mais do que uma forma de apresentação desse mesmo modelo.

O primeiro desses textos, de Tarkovsky, é particularmente afirmativo: “A arte da segunda metade do século XX perdeu o seu segredo. O artista do nosso tempo quis, subitamente, um reconhecimento rápido e total, um pagamento imediato por aquilo que realizava no campo espiritual. A chamada ‘Arte Moderna’, na sua maior parte, é apenas uma ficção, pois assenta no pressuposto erróneo de que o seu método se poderá tornar o significado e a finalidade da arte.”

Segundo Tarkovsky, “os problemas levantados pela dita Vanguarda só puderam resultar de uma época de mudança, que pôs em causa todas as normas e ideais de Beleza herdados”. As artes plásticas terão sido “as mais fortemente atingidas”: “Perderam consideravelmente a espiritualidade que até então lhes era inerente, sem ganhar, logo a seguir, uma nova espiritualidade.”

Chafes está com Tarkovsky. A dias da inauguração da sua retrospectiva, diz: “Não me interessa pertencer a um tempo de brilhantes e coloridos despojos de uma irreparável perda e confusão. Não quero que o meu trabalho faça parte desta vertigem de ignorância e consumismo, desta dessacralização do mundo e do milagre da vida. Não se trata de alheamento do tempo presente, bem pelo contrário: é por estar bastante informado sobre o tempo que me coube viver agora, neste mundo, que não me interesso por ele, nem quero ser refém dele. Acredito, como os antigos, que deve haver um significado único e superior por detrás de cada erva, flor, nuvem que passa ou criança que nasce. Para mim, a arte deve ser o espelho dessa íntima relação, desse encantamento, dessa magia. Estou farto da lógica horizontal que nos impõe um olhar conformado sobre a banalização do mundo.”

O passado nunca morre, o passado nem sequer é ainda passado, escreveu Faulkner — numa lógica não horizontal Ad Reinhardt é tão intemporal como uma escultura num templo no Camboja ou uma peça de Alberto Giacometti. Todas são presentes. Chafes diz: “Tudo aquilo que me interessa, em matéria de arte, é intemporal… Não tenho qualquer interesse por arte que seja refém do seu tempo ou das contingências históricas do seu tempo. Interessa-me a arte que consegue ultrapassar o tempo e a história, a arte que é afiada como uma lâmina de cristal.”

E se, como ele acaba por propor, as suas esculturas não passassem de “próteses melancólicas de um mundo em extinção”? Então, através delas, esse mundo não estaria em extinção. E ele perfilar-se-ia como um reparador do buracos negros da História que ameaçam quebrar os fios de continuidade entre os tempos e interromper a ligação entre os discursos estéticos contemporâneos e os seus referentes culturais.

Casacos e sapatos em ferro, armas e armaduras, máscaras de aspecto medieval, pedaços de esqueletos e carapaças vazias, máquinas para o corpo que são elas mesmas corpos — face a um presente que entende como hostil, Chafes constrói, peça por peça, uma revisão da História, uma leitura alternativa do mundo, da condição do Homem e dos seus mitos. Faz com que o mundo seja ainda um lugar referencial, que podemos cartografar.

Em 1992 a revista K escolheu um título: “Este homem é um génio.” Ele tinha 26 anos. Agora tem 47.

Há artistas que nascem já feitos, inteiros, completos. Uma pedra sobre o assunto. 

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