Um espírito de ferro

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“Não quando os outros olham II”, 1996 DANIEL ROCHA

É breve a linhagem dos artistas a trabalhar sistematicamente o ferro. Richard Serra é hoje o nome mais destacado. A antítese da escultura de Chafes

Não há, nunca houve muitos artistas a trabalhar sistematicamente e em exclusividade o ferro.

No princípio do século XX, nomes como Júlio Gonzáles e Picasso foram determinantes para a sua aceitação enquanto material artístico, tornando-o fundamental para a escultura modernista. Nasceu precisamente com ela a essência do que, na segunda metade do século XX, será mais frequentemente procurado no trabalho com este material: a monumentalidade, uma reflexão sobre o peso e a densidade, sobre a natureza e o poder de uma presença supostamente perene, sobre o seu impacto tanto na paisagem como no humano.

Não foi esta a via de todo o minimalismo norte-americano, o grande momento da utilização do ferro na contemporaneidade. Não foi, por exemplo, a via de Donald Judd nem David Smith. Mas é a via do mais emblemátics dos artistas a trabalhar hoje de forma sistemática este material: o norte-americano Richard Serra. Ora, pode dizer-se que Rui Chafes traça um caminho diametralmente oposto ao de Serra: em vez da exibição da matéria, o seu apagamento, em vez do peso, a extrema leveza, em vez da densidade, a fluidez...

Ao contrário de Serra, um colonizador brutal de espaços — as suas enormes placas de metal parecem irromper da terra ou dominar sobre ela, contrariando as leis da Natureza e instituindo-se, elas mesmas, como montanhas, penedos e fragas, presenças que estão ali desde sempre e para sempre —, as esculturas de Chafes não nascem do chão nem procuram esse enraizamento para se instituírem como nova natureza. São esculpidas no ar, e é por aí, e não por qualquer possibilidade de percepção monolítica, que se distinguem com tanta nitidez do que as rodeia.

Em geral, tocam o chão em um, dois pontos. Pode haver uma base, que se supõe vir a ser enterrada, desaparecendo, mas uma vasta maioria nasce ou dependura-se de paredes e cantos, varandas, campanários, árvores... No ponto mais absoluto da sua leveza, flutuam como grandes sóis extintos, como luas ou como balões negros. São coroas que pesam centenas de quilos e mesmo assim se desvanecem. Em muitos casos, perfilam-se como aquilo a que Rosalind Krauss poderia chamar não-paisagem, presenças perante as quais se poderia invocar Gonzáles para falar numa nova arte — a arte de desenhar no espaço.

Desenhos, ou, como propõe Doris von Drathen, “acontecimentos escultóricos no espaço”, qualquer coisa que parece ter acabado de tomar forma no momento em que nos deparamos com ela.

É que as peças de Chafes não se nos interpõem como obstáculos, obrigando-nos a percorrê-las por fora, a penetrá-las, perdendo-nos no seu interior, não nos forçam a contorná-las, admirando-as de baixo para cima, infinitamente pequenos perante a sua presença avassaladora — ao contrário das esculturas de Serra, as esculturas de Chafes estão e não estão ali: são mais como as formas transitórias de uma grande metamorfose contínua. Tal como sublinha Doris von Drathen, não dizem, não sugerem nem prometem nada, não se impõem — pelo contrário, chegam a recuar para a sombra, a camuflar-se discretamente na sua serenidade; mesmo nas emoções mais violentas, chegam a parecer não estar frente a nós, mas, antes, frente a um espelho invisível, onde a sua imagem surge separada de tudo o resto, incluindo de nós. E é nesta retirada visível do mundo que nos tornam cúmplices da sua história.

Como nota Manuel Castro Caldas, não se erguendo do chão nem se apropriando da parede, sinalizam que o seu lugar não é aqui; “jazem como formas que o mundo não acolhe, mas que nele foram abandonadas”, “pousadas sem raiz e sem alicerce” — nascem no espaço vazio do monumento, num espaço de “orfandade e melancolia”.

Por aqui, por esta espécie de ausência ontológica, bem como pelas noções de expanded field e pelo pensamento que propõem sobre o espaço, são nelas claras as influências do minimalismo. Mas apenas como referências em que Chafes pega como ponto de inflexão de uma elipse a partir da qual nos vemos reportados para outro tipo de malha referencial, nomeadamente leituras da arte medieval e de aspectos do Gótico Tardio.

No seu estudo histórico sobre as catedrais góticas, o historiador alemão Wilhelm Worringer escreve: “Se olharmos para a catedral gótica, vemos apenas um tipo de movimento vertical petrificado no qual a lei de gravidade parece ter sido completamente eliminada. Em contraste com a natural pressão para baixo da pedra, vemos apenas o prodigioso movimento de forças para cima. Não há parede, não há massa para comunicar-nos a impressão de uma existência material cristalizada; apenas mil forças individuais que nos falam, e praticamente não tomamos consciência da sua materialidade, porque elas agem apenas como portadoras de uma expressão imaterial, como portadoras de um movimento irrestrito para cima […]. Nenhum peso parece existir. Vemos apenas forças livres que se projectam em direcção ao céu com um élan prodigioso. Aqui a pedra fica aparentemente livre do seu peso material. Aqui ela é apenas o veículo de uma expressão não sensual, incorpórea. Em resumo, aqui ela desmaterializou-se.”

Desmaterializou-se — ou seja: espiritualizou-se. Porque, como conclui Worringer, “o antónimo da matéria é o espírito”.

Espiritualizar o ferro é libertá-lo do seu peso e do seu estatismo. Esta é a via de Chafes. 

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