Sobre o reino da possibilidade

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O Parque-Biblioteca Léon de Greiff e o Parque-Biblioteca España, ambos projectados por Giancarlo Mazzanti

Desde Medellín, na Colômbia, uma história de reconversão a partir de um novo paradigma cultural: a transmissão de conhecimento

Voltamos ao assunto, mas agora a partir de um estudo de caso e dando uma nova configuração ao que habitualmente se reclama, genérica e imprecisamente, como sendo cultura. O caso em estudo é Medellín, a segunda cidade da Colômbia. O termo a reconfigurar é: conhecimento.

Há pouco mais de uma década, Medellín era uma das cidades mais perigosas do mundo. Como os seus cartéis controlavam 80% da droga que se distribuía nas Américas, puderam, com o dinheiro do narcotráfico e o armamento que possuíam, tornar o Governo refém. O desemprego era assolador, o medo e a insegurança imperavam, a economia estava em colapso.

Porém, em meados da década de 90, depois da morte de Pablo Escobar — o mais sanguinário chefe dos cartéis —, surgiu um movimento político novo que partiu da associação de movimentos cívicos e organizações não integradas nos partidos tradicionais. O Compromisso Ciudadano, liderado por um matemático e professor universitário, Sergio Fajardo, ganhou as eleições municipais de 2003, obtendo a maior votação registada na história para a câmara de Medellín. Governou até 2007. Hoje, Sergio Fajardo é o governador do Estado de Antioquia, a que pertence a cidade de Medellín.

O actual Presidente da Câmara de Medellín, Aníbal Gaviria, ainda que pertencendo ao Partido Liberal, entendeu continuar, em certos sectores, com as políticas adoptadas anteriormente sob o lema “Medellín: do medo à esperança”.

Em apenas uma década de transformação radical, a cidade passou a ser considerada um modelo de gestão que tem como centro a cidadania e uma participação política abrangente. Esse modelo assenta sobre quatro pilares: 1) educação (formal e não formal); 2) segurança; 3) cultura; 4) transparência administrativa.

Estes pilares, por sua vez, puderam contar com o instrumento fundamental, um saber pensar urbanística e arquitectonicamente graças ao qual se conseguiu pôr fim ao medo e iniciar um sentido de pertença na cidade.

Simbolicamente, os muros com arame farpado e com garrafas quebradas foram destruídos e tornaram-se proibidos. Uma visão democrática e eficaz das novas tecnologias da comunicação resultou na sua utilização por todos nos espaços públicos, na administração pública, nos museus, nas bibliotecas. O esforço de alfabetização tecnológica foi enorme e os resultados obtidos são claros.

A educação é a prioridade da política do Governo e põe-se em prática através de várias instituições e modelos operativos. O resultado disto é já um aumento significativo da qualificação das pessoas e do Estado. Os quadros das organizações culturais são maioritariamente jovens muito bem qualificados, poliglotas, entusiasmados com as missões que executam.

A segurança — que a esquerda mais conservadora teme assumir como um princípio de actuação política que está para lá da sua compreensão sociológica — foi considerada nos seus aspectos preventivos e repressivos, o que teve efeitos imediatos. É hoje seguro passear pelas ruas de Medellín.

E aquilo a que se costuma chamar “questão cultural” é também central. A cultura é assumida como parte integrante dos orçamentos anuais e dos planos e objectivos do município — e é por isso que nos últimos anos o orçamento para a cultura em Medellín é o maior, em termos percentuais, de todas as cidades da América Latina.

Ora, é aqui que entra a nova configuração do termo cultura. Porque ao substitui-lo ou, pelo menos, ao subalternizá-lo de forma radical, colocando-o “abaixo” da expressão “transmissão de conhecimentos”, os responsáveis políticos por esta mutação significante retiraram do gueto (e do âmbito das conotações mais ambíguas) diversos conhecimentos de produção, bem como o reconhecimento desses conhecimentos e das suas múltiplas origens que estavam encerrados no termo “cultura”. Com isso, regressou-se a um grau zero de todas as ambiguidades e violências que o termo também comportava.

E recomeçou-se a partir daqui, do mesmo modo que se recomeçou o país.

Isto não será completa ou absolutamente verdade, nem as coisas são tão simples como parecem. A diversidade sociológica do país integra vários e distintos graus de instrução e de acesso cultural, é claro. Mas o enfoque dado à expressão “transmissão de conhecimentos” criou debates públicos: sobre o conhecimento ancestral e as tradições, sobre os conhecimentos mais recentes, sobre a diversidade dos seus usos, das suas aprendizagens. Isto acontece num ambiente de distopia que é o lugar para onde o termo “cultura”, associado à globalização, remeteu o presente. Aqui, conseguiu-se introduzir no presente o reino da possibilidade através da “transmissão dos conhecimentos”.

Um sintoma e um exemplo deste reino da possibilidade são os parques-bibliotecas. Nos últimos dez anos foram construídos em Medellín dez parques-bibliotecas. Instalados no centro de vários aglomerados de freguesias (sendo que cada uma delas serve dezenas de milhares de pessoas), são eles as âncoras da transmissão de conhecimentos. Todos foram construídos obedecendo a um programa específico, conforme o lugar em que se implantaram e as missões que se propuseram. Como matriz comum, a documentação, o arquivo e a acessibilidade de leituras. Depois, chegaram as mais variadas expressões e práticas de transmissão de conhecimentos: desde a formação em Word para cultivadores de flores até ao apoio jurídico para pequenos conflitos, passando por salas de ensaio para as artes, creches com netos e avós onde se dá particular importância à cultura oral, seminários sobre os protocolos do funcionamento do comércio justo, etc.

Os parques-bibliotecas são também, na sua coerência programática, exemplos de boa arquitectura. Estão abertos todos os dias do ano, inclusivamente no Natal e no Ano Novo, e acolhem milhares de pessoas todos os meses para práticas de conhecimento mais minoritárias ou mais maioritárias. Não salvaram a Colômbia, mas os colombianos de Medellín agora sabem que, apesar das enormes contradições que pode haver na transmissão dos conhecimentos, há ainda assim, a par de narrativas tenebrosas e do cepticismo geracional, um reino da possibilidade. Tal qual como, ao sair de uma exposição de arte contemporânea fortemente participada, se apanha um táxi com um motorista que, enquanto conduz, come esparguete e canta uma canção revolucionária dos tempos da guerrilha.

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