Do incêndio de um teatro às laranjeiras das calçadas portuguesas

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JOÃO OCTÁVIO PEIXOTO

Doze artistas ocupam Guimarães e reagem às memórias da cidade: a colectiva ReaKt. Olhares e Processos, que pode ser vista até ao próximo dia 23, propõe uma releitura do espaço público da Capital Europeia da Cultura

Numa das entradas de Guimarães, na rotunda da Avenida D. João IV, um enorme outdoor acolhe os visitantes da Capital Europeia da Cultura. Nele, apenas duas grandes palavras a vermelho e verde, separadas por um sinal amarelo: Cultura = Capital. A obra é assinada por Alfredo Jaar, e é uma das muitas que integram, até ao próximo dia 23, a ReaKt. Olhares e Processos, uma das colectivas mais interessantes de Guimarães 2012.

Na realidade, a peça de Jaar, embora se aproprie sem grandes desvios de uma outra de Josef Beuys (Kultur=Kapital), exceptuando o novo sentido conjuntural que é possível agora atribuir à primeira dessas duas palavras, resultou de uma de muitas residências artísticas que a comissária, Gabriela Vaz-Pinheiro, organizou para os artistas incluídos na exposição. Pediu-lhes que considerassem as diferentes culturas que tinham existido em Guimarães durante o século XX, e que a partir desse olhar concebessem um projecto artístico que traduzisse um ponto de vista pessoal e comprometido sobre a história recente da cidade. Os resultados foram diversos, e alguns bem mais interessantes do que o já referido de Alfredo Jaar. Muitos colocam a tónica não só em activididades características do passado industrial da região, mas também na convocação de um corpo que trabalhou, se divertiu, saiu de casa ou, pelo contrário, aí permaneceu na invisibilidade de um trabalho não remunerado, e que, em todos os casos, interagiu, se apropriou e usou o espaço da cidade e dos seus arredores.

Podemos seguir o mapa que nos é fornecido num dos locais de exposição, e ir por exemplo ao antigo átrio do Teatro Jordão, na Av. D. Afonso Henriques, onde Pedro Barateiro realizou uma performance juntamente com Ricardo Nicolau (Prova de Resistência). A acção consistia na leitura de um texto que possuía uma série de referências ao fogo e a folhas de papel queimadas, seguido de uma peça de Gertrud Stein. Ora, o Teatro Jordão ardeu efectivamente, dele só restando o espaço onde a performance se realiza. A peça é completada por uma maquete exposta na fábrica ASA, sobre a qual é projectada documentação visual referente ao texto lido. A obra de Barateiro, que se tem debruçado de forma sistemática sobre a multiplicidade dos suportes e sobre os efeitos entrópicos da repetição, adequa-se particularmente bem ao lugar e à sua história.

Mais adiante, já perto do centro da cidade (Largo 25 de Abril, 82), Lee Mingwei ocupou uma antiga loja devoluta com um atelier de conserto de têxteis, The mending project. Este trabalho, que tradicionalmente era executado por mulheres em regime doméstico, não se limita aqui a ocultar do modo mais perfeito possível um rasgão ou um buraco, mas intervém sobre o tecido como a arte o faz sobre qualquer suporte. Continuando a visita, agora no Largo Condessa do Juncal, espera-nos uma estrutura com alvéolos onde cada espectador deve entrar. Trata-se de uma sala de projecção no meio da cidade antiga, criada pela dupla Marysia Lewandowka e Colin Fournier, que passa séries de trailers de filmes comerciais pertencentes ao cineclube da cidade. Os trailers foram escolhidos por operários de Guimarães, e correspondem bem ao cinema realizado para as massas na mais pura tradição hollywoodiana.



Teares e pés de laranjeira

Há muitas outras obras dispersas pela cidade, e mesmo fora dela, como é o caso de uma das construções efémeras de Carlos Bunga, situada na Praça do Instituto do Design, em Couros. Mas duas das mais emblemáticas estão num dos espaços da Fábrica ASA, que acolhe também a documentação de cada projecto. Numa mesa, a comissária pediu aos quatro artistas presentes neste espaço - Ângela Ferreira, Ricardo Basbaum, Pedro Barateiro, de quem já falámos, e Vasco Barata - para disporem livros que se tenham revelado particularmente interessantes para a concepção das suas obras. Os livros, que os visitantes podem consultar sentados, convocam o começo da concepção de cada trabalho, e no fundo acentuam aquilo que é importante em cada uma destas obras: o processo criativo, que até se pode traduzir numa peça só aparentemente muito diferente da ideia inicial. Por exemplo, no trabalho de Vasco Barata encontramos as esculturas em MDF evocadoras de espaços históricos e culturais de Guimarães, da Citânia de Briteiros ao Palácio Vila-Flor ou à própria Fábrica ASA. Depois, numa projecção vídeo, é-nos contada a história de duas gémeas que partem de uma visão do presente (no sentido literal) para explorar o passado ligado à geografia da cidade. O título desta peça é significativo: Os nossos ossos: Ariadne.

Basbaum também trabalhou a geografia da cidade, mas no aspecto mais explícito de um mapeamento maleável que se foi alterando no decorrer da exposição (Reprojectando Guimarães). Nesta sala, contudo, a peça mais eficaz é constituída por duas esculturas de Ângela Ferreira, intituladas Fábrica Colapsável: dois teares que, graças a um jogo de roldanas e manivelas, se deslocam e desdobram a partir da sua posição inicial. Trata-se de uma muito bem conseguida metáfora sobre o desaparecimento da indústria têxtil em Guimarães e no Vale do Ave durante as últimas décadas: o tear que se inclina para a horizontal nega a sua função primeira, e adquire um valor estético no qual o uso apenas funciona como memória.

O visitante poderá terminar o circuito ainda na Fábrica ASA, mas num pavilhão situado fora do edifício principal que era usado como oficina de estamparia. Aqui, o colectivo Raqs Media apresenta The Fruits of Labour, uma instalação com uma centena de pés de laranjeira que, no futuro, serão transplantados para a própria cidade. A peça possui diversas leituras, entre aquela que é dada por um artigo de jornal indiano aconselhando os desempregados a utilizarem instalações industriais devolutas para o plantio de hortas e uma evocação do laranjal do filme Vale Abraão, de Manoel de Oliveira. Aquela que melhor condensa o propósito de Raks, contudo, é a que se liga à imagem das cidades do Sul para as populações do Norte da Europa: cidades onde as laranjeiras crescem na rua, entre as pedras da calçada, e onde, cada vez mais enganadoramente, a vida é doce, fácil e saborosa.

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