Paris Photo - No Japão, a verdade da fotografia já não é o que era

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Fotografia de grande qualidade numa edição que juntou 130 autores japoneses. Alguns deles vieram do futuro.

O beberete no primeiro dia da Paris Photo no Carrousel du Louvre mal tinha começado, mas percebeu-se logo para onde estava virada a gula para o Japão, convidado de honra da edição deste ano da feira que decorreu no último fim-de-semana. No subsolo do Louvre havia mesas fartas de tudo quanto era acepipes delicodoces de nouvelle cuisine e um ou outro petisco de sabor mais tradicional.O certo é que era na esquina onde se cortavam rolinhos de sushi e se ofereciam lascas de peixe cru que os magotes de convidados se juntavam à espera de mais uma rodada. E isto era só um aperitivo, porque o petisco maior ainda estava para vir nas galerias, nas livrarias, nas editoras e no trabalhos dos artistas nipónicos que a organização em boa hora decidiu trazer à Europa, em número e qualidade nunca vistos por aqui.

Na Paris Photo havia de tudo o que se pode imaginar numa feira de fotografia que se diz no topo do mundo da especialidade. Estava lá a nata, tudo. Mas aquilo que mais adocicou a feira parisiense foi a fotografia japonesa que se livrou de vez dos estereótipos do exotismo e dos espartilhos do arcaísmo e da rusticidade. Hoje, quem olha para este corpo de trabalho o que vê é ironia, sofisticação, ambiguidade e, em muitos casos, uma reflexão apurada dos lugares e modos de vida, no Japão e fora dele.

Para dizer fotografia em japonês é preciso conjugar os fonemas "sha" (reproduzir) e "shin" (verdade). "Shashin" é reproduzir a verdade. Ou pelo menos era, porque os fotógrafos japoneses já se libertaram deste jugo etimológico e do significadoà letra dos ideogramas. Quem o diz é a comissária responsável pela representação nipónica na Paris Photo, Mariko Takeuchi: "Através de uma grande diversidade de abordagens, os fotógrafos japoneses mostram que não existe verdade com um 'v' grande, questionando nas suas obras se a fotografia está em condições de reproduzir e o que é que escapa nessa tentativa de reprodução."

Trazendo imagens mais ou menos "verdadeiras", a constelação de fotógrafos do arquipélago asiático que se conseguiu reunir no Carrousel du Louvre foi de tal ordem (mais de 130 autores) que até Anne Wilkes Tucker, conservadora de fotografia do Museu de Belas-Artes de Houston e comissária da mais importante exposição de fotografia japonesa realizada até agora no Ocidente (History of Japanese Photography), ficou espantada: "É uma proeza. As galerias do Paris Photo conseguiram mostrar obras raras que não consegui ter no Museu de Houston, em 2003." Talvez por isso, e não só, a edição deste ano da feira tenha batido um recorde de visitantes 37.760 entradas, mais 5500 do que em 2007.

Ao todo, no sector geral, 40 expositores tocaram de alguma maneira a fotografia japonesa mostrando os grandes mestres clássicos através das experimentações avant-garde de Osamu Shiihara, dos primeiros passos do fotojornalismo de Ihei Kimura, do realismo poético de Ichiro Kojima, da fotografia crítica e de denúncia de Seiryu Inoue ou do prenúncio das grandes obras-primas impressas em livro com Barakei (morto pelas rosas) de Eikoh Hosoe e as estrelas contemporâneas. Destes últimos, destaque para a viagem sem tabus pela intimidade da vida, sexo, amor e morte de Nobuyoshi Araki; para o realismo directo e cru de Daido Moriyama, um dos fundadores da revista Provoke (o nome diz tudo); para a conceptualização das categorias espaço/tempo de Naoya Hatakeyama e Hiroshi Sugimoto; e para as interrogações sobre a identidade, o corpo e a sexualidade de Miyako Ishiuchi, figura pioneira entre as mulheres fotógrafas japonesas. 

À boleia da onda fotográfica nipónica instalada em Paris foram muitos os galeristas europeus e americanos que apostaram em artistas japoneses que já tinham em carteira. Uns preferiram imagens soltas ou pequenas narrativas (Zeit-Foto Salon, Tóquio, a primeira galeria japonesa exclusivamente dedicada à fotografia). Outros (Fifty One Photography Fine Art, Anvers) propuseram diálogos, como o das imagens de Tokyo (1961), de William Klein, com as de Daido Moriyama, que reconheceu influências do mestre americano no seu trabalho, nomeadamente através da utilização da luz natural e de uma visão directa sobre a realidade. Na mesma linha, relacionaram-se as imagens de íntima fragilidade de Sarah Moon (Camera Obscura, Paris) com as de nostalgia delicada de Masao Yamamoto, que dispôs o seu trabalho nas paredes da galeria Jackson Fine Art (EUA) ao vivo, durante a noite da inauguração, segundo o conceito japonês "ma" que dita o "espaço entre as coisas, o sentido do tempo ou a mudança de situações".

Entre todos os japoneses, o nome que mais apareceu foi o de Araki, com suas fotografias de mulheres atadas (a imagem de marca) em pelo menos uma dúzia de galerias. Já a fotografia antiga teve uma presença mais discreta em todo o salão, com um ou outro álbum de família ou pequenas colecções de retratos de gueixas com quimonos pintados à mão. 

 

Fotógrafos e emergentes 


Para potenciar ainda mais a fervilhante produção contemporânea e aguçar o apetite de coleccionadores (é inegável a fotografia japonesa está na mó de cima), a organização decidiu apostar numa secção (Statement) vocacionada apenas para a cena emergente. As propostas dos 17 artistas representados variavam muito no que toca a sujeito fotografado, estilo e técnica. Mas havia traços comuns identificáveis de percurso pessoal que ajudam a compreender e enquadrar melhor os trabalhos seleccionados. É uma geração que atingiu a idade adulta durante o fim da bolha económica japonesa, no final dos anos 90, e que experimentou os efeitos da crise económica que se lhe seguiu. É também uma geração que, no quadro desta conjuntura, sentiu o abanão nos alicerces da sociedade em que vivia e que foi obrigada a reequacionar a tradição, o quotidiano e a identidade japonesa num mundo globalizado com novas regras de coabitação. Talvez por causa de tamanha ambiguidade do presente e de ainda maior indefinição do futuro próximo, a maneira de se exprimirem pela arte fotográfica está muito ligada à experimentação e ao devaneio conceptual, privilegiando a unicidade dos seus olhares em detrimento da técnica ou do objecto fotografado.

Entre os nomes emergentes o trabalho de Rinko Kawauchi (autora da fotografia dos suportes de divulgação da Paris Photo) foi dos mais requisitados. Para além de projectos mais antigos, brilhou a série Utatane 2, visão intimista e emotiva de momentos efémeros do quotidiano em pequeno formato.

Aquilo que as galerias nipónicas trouxeram em suporte fotográfico foi muito bom. Mas aquilo que as editoras encadernaram em livro e embalaram rumo a Paris não lhe ficou nada atrás. Se há país no mundo onde se pode falar em obra-prima sob a forma de álbum fotográfico, o Japão é um deles.No catálogo da feira, a comissária Mariko Takeuchi relaciona este enamoramento com a falta de um esquema de galerias ou de um mercado organizado de venda de fotografia durante um longo período. E fala também na ancestral tradição japonesa nos métodos de impressão em papel e na simples paixão pelos processos de reprodução de imagem. A tudo isto há que somar a qualidade dos trabalhos impressos, escolhas de design certeiras e uma maneira muito inteligente de construir narrativas pela imagem em livro.

Assim é fácil perceber por que é que as prateleiras dos cinco editores japoneses convidados (Akaaka Art Publishing, Little More, Book Shop M, Seigensha Art Publishing, Tosei-Sha, alguns nunca se tinham mostrado fora do Japão) foram dos espaços mais concorridos da feira.Um dos culpados pela mais recente febre à volta dos álbuns de fotografia japoneses chama-se Martin Parr (autor, em conjunto com Gerry Badger, de The Photobook: A History), habitual presença na Paris Photo que, no meio de uma sessão de autógrafos na galeria da cooperativa Magnum, falou deste fascínio que ajudou a fundar: "Os fotógrafos japoneses são brilhantes.Entendem a fotografia de uma maneira que nós na Europa não entendemos. São muito eloquentes e fazem livros extraordinários. Estas duas coisas juntas são muito fortes.Talvez por isso, quando se pensa em Tóquio, não se pensa em pintura ou em escultura, mas em fotografia." 

 

As compras de Cantona 


Se eram fotografias de Tóquio, não se conseguia perceber, porque as duas molduras que o antigo avançado francês do Manchester United Eric Cantona tinha debaixo do braço já estavam bem embrulhadas pela galeria Laurence Miller que, diga-se, tinha um pouco de tudo históricos, vintage, consagrados, contemporâneos e japoneses. Ficámos sem saber para que lado pende o gosto fotográfico do ex-enfant terrible dos red devils, mas percebemos que o negócio, feito ali, à vista desarmada, chegou quase aos 30 mil euros. Afinal, apesar da crise tinha de se falar dela e apesar do ritmo "mais lento que o habitual", houve "muitas vendas", garantiu a organização.Como os tempos não estão para grandes riscos, as fotografias antigas e as provas vintage foram as mais procuradas. Na galeria inglesa Robert Herschkowitz, por exemplo, foram negociadas 12 imagens, entre as quais uma do pioneiro Fox Talbot (50 mil euros) e outra de Roger Fenton (65 mil euros), um dos primeiros fotógrafos de guerra.Na Hans P. Kraus, só uma fotografia do perfeccionista Frederick H.Evans valeu 100 mil euros. Quem vendeu mais fotografia japonesa vintage foram a americana Howard Greenberg, a alemã Priska Pasquer e a inglesa Michael Hoppen.

Se a fotografia de época se vendeu relativamente bem, a fotografia contemporânea tinha menos bolinhas vermelhas por baixo das molduras. As galerias com melhores performances foram a 798 Photo Gallery (Pequim), que vendeu mais de 30 obras de Yao Lu, vencedor do prémio BMW Paris Photo 2008, e a Philippe Chaume (Paris), com 27 fotografias negociadas. Entre os expositores japoneses, destacouse a MEM (Osaca), com 50 obras vendidas. Do lado das editoras, quem mais ficou a ganhar foi a chancela Toluca (Paris), que lançou na feira o último livro de Araki (Tin Ashes) e vendeu 21 exemplares a 6500 euros cada.

Embalados pelo sucesso japonês em Paris, os organizadores da feira decidiram continuar pela Ásia na próxima edição: em 2009, o foco vai estar na fotografia da cena árabe e persa. Para Guillaume Piens, director artístico da Paris Photo, a porta para esta região vai ser ainda "mais complicada de abrir" do que foi para o território japonês. Certo é que, caso se abra, não vai faltar quem queira espreitar.

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