A minha juventude em Paredes de Coura (parte II)

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Em 2005 usámos pela primeira vez a palavra epifania e ficou decidido que a nossa juventude acabava ali, com três pontos de exclamação e uma ligeira, mas mesmo muito ligeira, vontade de chorar baba e ranho

Esta crónica só não se chama "A minha juventude em Paredes de Coura" porque um dia esse título foi usado aqui no Ípsilon pela Alexandra Lucas Coelho e agora onde é que já vai a juventude. Dois anos e meio depois desse desfalque, é um bocado tarde de mais para disputar Paredes de Coura, se até quem não estava lá em 2005 se faz passar por quem esteve (ide lá em paz e o senhor vos acompanhe: falhar aquilo não será o mesmo que falhar uma vida, mas é o mesmo que falhar uma juventude, nalguns casos duas).

Paredes de Coura, pois bem, por onde começar (é uma longa história)? Houve um concerto dos Tindersticks, um fogo-de-artifício e metade de um Lexotan, isto em 1998, num Verão daqueles de não ficar pedra sobre pedra (mas um Verão a sério, depois de quatro meses a chover em cima da Bélgica). Nessa altura ainda não sabíamos que era possível fazer festivais só com um Credifone, que era como Paredes de Coura era feito antes de lá chegarmos com as nossas belas juventudes, antes de nunca mais de lá termos saído.

No ano seguinte já não houve fogo-de-artifício, só braços-de-ferro com a GNR, conversas sobre rapazes que dariam o rabo e mais cinco tostões por uma Coca-cola e muito medo do cão à entrada da casa em Âncora, a sabe-se lá quantos quilómetros de Paredes de Coura (não voltámos a dormir lá, teríamos gasto uma fortuna em Lexotan e na nossa juventude, em 1999, ainda não tínhamos um salário). Paredes de Coura já era enorme, já era um festival que nem um milhão de Credifones juntos poderiam pagar, e aconteciam coisas se não maiores do que a vida pelo menos do tamanho dela. A nossa vida na altura também não era assim tão grande, vá, e qualquer Andy Barlow dos Lamb a fazer estragos nos seguranças por não querer acabar o concerto, qualquer Klaas Janzoons dos dEUS a atirar aquele violino para cima do "Suds & soda", qualquer parede de guitarras dos Mogwai nos faziam felizes num sábado à noite (como na canção que os Suede lá foram tocar nesse mesmo ano).

Os anos passaram e não fomos felizes para sempre, nem sequer fomos sempre felizes aos sábados à noite, mas lá nos aguentámos até 2005 - sem pôr lá os pés em 2000, 2001 e 2004, ou a chegarmos muito atrasados em 2002 (nunca agradeceremos suficientemente ao João Bonifácio, já na altura a pagar o preço da sua fama em tudo quanto eram fóruns de leitores e de ouvintes, a cortesia de nos ter poupado à parte pior da pior edição do festival). A seguir houve o ano em que os Yeah Yeah Yeahs fizeram rock com ananases, em que falámos (três pontos de exclamação) com o Mark Lanegan e em que a PJ Harvey, meu deus, a PJ Harvey, de vestido branco nas fotografias do Marco Maurício (que uma vez estava em Paredes de Coura quando nós estávamos em Faro a fazer uma espécie de Local Algarve e a ouvir Frankie Goes To Hollywood no auto-rádio, e que agora está em Marraquexe, o que fica ainda mais longe do que a nossa juventude). E a seguir houve 2005, o ano em que usámos pela primeira vez a palavra epifania e em que ficou decidido que a nossa juventude acabava ali, com três pontos de exclamação e uma ligeira, mas mesmo muito ligeira, vontade de chorar baba e ranho, entre um concerto dos Arcade Fire e outro dos Pixies (tivemos duas juventudes, e uma banda para cada).

Depois disso achávamos que nunca mais nos iam acontecer coisas em Paredes de Coura, mas a lista - vimos finalmente os The National, estivemos "on the road" na América profunda dos Woven Hand, fomos na conversa do Vincent Gallo, fumámos cigarros com o Nick Cave, e tudo isto só nesse ano mítico - diz-nos demasiadas coisas. Voltámos a Paredes de Coura compulsivamente em 2006 (Morrissey a mudar de camisa, 20 mil pessoas em cima de "Maps", dos Yeah Yeah Yeahs, e de "Two more years", dos Bloc Party, e ainda houve Gang of Four e Bauhaus), em 2007 (fomos ao baile funk e aos musicais de Bollywood com a M.I.A., cantámos sem parar uma canção dos Architecture in Helsinki e depois sentimo-nos pequenos, completamente miúdos, à beira dos Sonic Youth), e em 2008 (o ano em que nos detestámos por termos passado tantos anos sem ouvir Primal Scream, em que pedimos um autógrafo ao Tom Barman para o Miguel Pataco, belo nome mas não para pronunciar em inglês, e em que passámos uma tarde a comer o algodão doce das Au Revoir Simone).

Depois de termos tido a epifania, este é o primeiro ano que ficamos a olhar para Paredes de Coura à distância, como o Humphrey Bogart e a Ingrid Bergman olham para Paris à distância quando estão em Casablanca. Isto para explicar que esta crónica só não acaba comigo a dizer que teremos sempre Paredes de Coura porque um dia esse título também foi usado aqui no Ípsilon.

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