Sou Fujimoto, o arquitecto que constrói florestas

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Os habitantes da Wooden House têm que se encaixar entre os blocos de madeira - como estes não têm função definida podem ser o que cada um quiser

O futuro, diz Sou Fujimoto, é de novo a caverna: seríamos mais criativos se não estivéssemos limitados por esta arquitectura em que uma cozinha é uma cozinha e um quarto é um quarto. Ainda podemos recuperar o tempo perdido, e reconstruir uma relação intuitiva com o espaço. É isso que ele tem andado a fazer no Japão

O arquitecto está aqui para nos falar da floresta.

À frente dele estende-se o caos - bom, um certo caos. Na sala do Museu do Oriente não param de entrar pessoas transportando debaixo dos braços cadeiras dobradas, que depois abrem e tentam encaixar nos poucos espaços livres. Alguns ajeitam-se, chegam-se para o lado para arranjar lugar para os recém-chegados, outros simplesmente já desistiram e ficam encostados à parede.

Sou Fujimoto, o arquitecto japonês, elegantíssimo na sua camisa negra, tem um ar impassível. No entanto, muito discretamente, parece transparecer no seu rosto uma certa estupefacção pelo entusiasmo que a sua conferência está a gerar em Portugal (onde esteve no dia 22 de Outubro, para a inauguração da exposição "Novas Tendências da Arquitectura na Europa e Ásia-Pacífico 2008/2010", no Museu do Oriente).
É preciso esperar ainda algum tempo para que a assistência consiga ocupar o espaço de uma forma mais ou menos razoável (muitos não conseguirão entrar na sala) e se acalme para ouvir Fujimoto. O arquitecto está, provavelmente, a achar a experiência interessante, porque corresponde exactamente ao que ele defende. "Pode ser excitante misturar coisas muito ordenadas e algum caos. O comportamento natural das pessoas é caótico e eu gosto de enfatizar isso", há-de explicar mais tarde ao Ípsilon.

Fujimoto gosta de falar das "possibilidades da floresta como arquitectura". E gosta de comparar o espaço construído pelo homem ao "ninho" - pela necessidade de conforto, pela adaptação do meio que nos rodeia às nossas necessidades. Mas o que ele propõe é diferente: é um "regresso à caverna". Aí, ao contrário do ninho, não é o espaço que se adapta às necessidades dos homens, mas o contrário. A caverna, diz Sou Fujimoto, "inspira as pessoas a comportarem-se com maior liberdade."

E, para nos explicar exactamente o que quer dizer - um conceito que baptizou como "futuro primitivo" - conduz-nos até à "caverna". Ele chamou-lhe Wooden House e o que temos é uma construção feita com blocos de madeira de 35 centímetros, que "entram" para o espaço interior da casa, sobre a qual há um telhado de vidro. Na prática as pessoas têm que se encaixar entre estes blocos, sendo que nenhum deles tem uma função específica, e assim uns podem ser usados como degraus, outros como mesas, outros para nos deitarmos ou para nos pormos de pé e espreitarmos o céu. Sem funções pré-definidas, acredita Fujimoto, as pessoas tornam-se mais criativas.

"O ninho é um espaço bem preparado para as pessoas. A caverna é um espaço não preparado para as pessoas, mas no qual gradualmente vamos encontrando o nosso local confortável para nos sentarmos, vamos descobrindo as possibilidades do espaço."

Acha que as pessoas hoje lidam com o espaço de uma forma muito limitada? "É isso exactamente. De certa forma a arquitectura muito preocupada com a função limita os usos e os comportamentos. Eu gosto de libertar esse potencial das pessoas."

O futuro primitivo

As primeiras experiências de Sou Fujimoto são completamente conceptuais. Uma maqueta da sua Primitive Future House mostra uma espécie de nuvem difusa de degraus, com pequenas figurinhas que os vão ocupando da forma que lhes apetece. A Wooden House aproxima-se mais de um espaço habitável mas não chega a ser um. E, no entanto, a arquitectura de Fujimoto é habitável.

É ainda a floresta que o leva a pensar na relação entre o interior e o exterior dos espaços que habitamos. "Nasci em Hokkaido [a segunda maior ilha do arquipélago japonês], onde faz muito frio lá fora e dentro das casas está quente. Quando mudei para Tóquio encontrei uma cidade em que as casas são muito pequenas e as ruas muito estranhas, o que cria uma continuidade interessante entre o interior e o exterior. De certa forma estamos protegidos", explica na conferência. Diz muitas vezes que esse carácter orgânico de Tóquio, em que a rua parece um prolongamento da casa, lhe serviu de inspiração. "No fundo, penso que a sensação de brincar na floresta é muito semelhante à sensação de viver em Tóquio", explicou numa entrevista à ArteCapital em 2009.

Foi essa sensação que o inspirou a criar a House N, uma casa em Oita feita de "três caixas, uma caixa grande, uma média e uma pequena - caixa dentro de caixa, dentro de caixa". Criam-se assim diferentes espaços de privacidade - maior na caixa pequena e menor nas outras. A "caixa grande" é uma estrutura com aberturas rectangulares em cima e nos lados que "cobre" o resto da casa, deixando entrar o exterior, mas não completamente. "Não é só um objecto sólido no meio de uma cidade. É uma casa que às vezes inclui o céu, às vezes inclui os vizinhos."

As aberturas rectangulares fazem lembrar os espaços vazios deixados onde antes tinham estado janelas nas fachadas de edifícios em ruínas. "Gosto de ruínas", diz Fujimoto. "São geralmente o fim da arquitectura. Mas se quisermos [como na House N] podem ser também o princípio."

Fujimoto aplicou o mesmo conceito de ausência de fronteiras claras na House Before House, um projecto construído na cidade de Utsunomiya, no qual os espaços interiores e exteriores, ligados entre si por escadas, se confundem, com árvores e pequenos pedaços de terreno a surgirem no meio da estrutura de espaços interiores.

Havia, contudo, alguma curiosidade sobre como é que estas ideias sobre a relação entre os corpos e o espaço se iriam traduzir quando Fujimoto se visse confrontado com um projecto de maiores dimensões. A sua visão acaba de ser testada com a recém-terminada Biblioteca Universitária de Arte de Musashino, em Tóquio. Com o número de estudantes universitários em queda no Japão devido ao envelhecimento da população e às elevadas propinas, explica a "Architectural Review", as universidades tentam de várias formas atrair estudantes. Criar uma biblioteca com uma forte identidade faz parte dessa estratégia. Foi aberto um concurso e Fujimoto fez a sua proposta - uma floresta de livros.

O edifício é inteiramente dominado por enormes prateleiras, criando uma sensação de floresta, e, segundo explicou o arquitecto, dando às pessoas a sensação de que podem vaguear pelo espaço e, eventualmente, perder-se nele. Mas, explica a "Architectural Review", a ideia inicial de Fujimoto teve de ser adaptada a algumas exigências de uso - uma necessidade que não perturbou o arquitecto, que terá percebido as críticas dos que diziam que o carácter mais caótico do seu desenho inicial tornava o sistema numérico de classificação dos livros uma confusão, levando muitos estudiosos a perderem-se verdadeiramente.

E por muito que Fujimoto queira introduzir alguns elementos de caos, não quer que a sua arquitectura-floresta se torne um labirinto do qual as pessoas não consigam sair. O que ele procura é que as pessoas recuperem uma relação mais intuitiva entre o corpo e o espaço. Algo que, acredita, se terá perdido ao longo dos tempos. Quando exactamente? A partir do momento em que o homem começou a construir espaços para habitar?

Em todas as épocas houve diferentes formas de viver os espaços construídos, diz. "Parece que falo de Le Corbusier como um inimigo", ri Fujimoto, "mas ele, ao mesmo tempo que falava da arquitectura funcionalista fazia também uma arquitectura com maior abertura de espírito. Gosto muito da Villa Savoye, por exemplo. Claro que é funcionalista, mas ao mesmo tempo deixa as pessoas livres para encontrarem o seu espaço escondido e as funções da casa. Tem um potencial de diversidade."

Tal como outro tipo de arquitectura de que Fujimoto gosta particularmente: a das catedrais góticas. "São espaços muito fortes. Numa catedral gótica há várias escalas de espaço diferentes. Os grandes espaços são dominantes, claro, mas depois há espaços laterais, com escalas mais pequenas, a zona do claustro... parece caótico mas é um espaço com diferentes qualidades."

Sou Fujimoto não é dogmático. Não diz que o racionalismo e o funcionalismo nos fizeram perder coisas. "Perdemos algumas, mas ganhámos também. Não quero negar a história da arquitectura. É muito importante, essas camadas da história - umas vezes perdemos, outras transformamos. O que eu gosto é de voltar atrás para compreender como é que as coisas se passavam há muito tempo."

Não se pense que é um arquitecto que defende a não-arquitectura. Nada disso. "Não defendo o regresso à natureza ou à montanha, mas acho que seria agradável recuperar algumas sensações que se perderam nesta sociedade contemporânea."

É isto o "futuro primitivo".

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