Juan Gabriel Vásquez e os cromos de Medellín

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Dar uma ordem à experiência humana é o trabalho de "O Barulho das Coisas ao Cair", Prémio Alfaguara. O seu autor é já um dos mais importantes escritores latino-americanos da sua geração. Conversa com o narcotráfico ao fundo

Numa viagem de avião, um homem vai a ler Crime e Castigo. Sem saber porquê, e sem isso ter qualquer relação, mesmo remota, com a leitura do clássico russo, acende-se-lhe no pensamento a imagem de coisas a cairem do céu. Lembra-se, entretanto, que na história que há meses começou a escrever - e que ainda vai dando com timidez os primeiros passos, como que a perceber em que terrenos tem de caminhar - o episódio central é a queda de um avião. A caixa negra registará não apenas as conversas dos pilotos mas também os ruídos de tudo o que perde o seu lugar dentro do aparelho em queda. O título dessa história acabou de ser encontrado: O Barulho das Coisas ao Cair. Com ela ganhou Juan Gabriel Vásquez (Bogotá, 1973) o Prémio Alfaguara 2011, um dos mais importantes e mais cobiçados da literatura em língua castelhana. Ainda a propósito do título, o escritor colombiano confessa ao Ípsilon: "Na minha cabeça, essa imagem converteu-se logo noutras coisas: a metáfora de um homem que cai, de uma família em queda, de um país [Colômbia]... É fascinante quando isso acontece, é fascinante quando um título assim literal começa a tornar-se metafórico à medida que a escrita avança. Assim sabemos que o título está vivo."

Juan Gabriel Vásquez é um dos mais inventivos e reconhecidos autores de uma nova geração de escritores latino-americanos que conseguiu romper definitivamente com o "realismo mágico" do Boom e que deu lugar a um realismo mais reflexivo, com muitas influências que não passam pela América Latina. A escrita de Vásquez, a sua ideia de literatura e do seu ofício, foi moldada por Joseph Conrad (de quem escreveu uma biografia), James Joyce, William Faulkner (a personagem central, o aviador de O Barulho das Coisas ao Cair, é claramente faulkneriana), Philip Roth e Vargas Llosa. Depois há as influências passageiras, aquelas que marcam cada livro: "E aí estão nomes muito variados, de Fitzgerald e Borges a Juan Carlos Onetti e a E. L. Doctorow", diz Vásquez desde Barcelona, cidade para onde se mudou em 1999 (depois de ter vivido em Paris enquanto se doutorava em Literatura). Ao contrário de alguns autores que menosprezam o Boom e a influência que este ainda continua a ter na literatura latino-americana (depois de uma geração que não se conseguiu libertar da imagem do "continente mágico"), Juan Gabriel Vásquez não quer ouvir dizer que a sua geração "matou o pai" - vê nisso um "atalho da mediocridade" quando implica uma diatribe contra o Boom - e assume o legado deixado pela geração de García Márquez. "Longe de serem os pais que temos de matar, foram uma inesgotável fonte de ensinamentos. Revejo-me neles e na sua experiência, mesmo se for para saber o que não devo fazer. Foram uma geração mais híbrida e universal do que aquilo que se reconhece, e são os nossos clássicos. Para quê matá-los? Aproveitemos antes a sua sombra para escrevermos a nossa própria obra, que se valermos qualquer coisa como autores, será original e diferente."

Em O Barulho das Coisas ao Cair, cuja acção decorre na capital colombiana - Bogotá surge transformada numa cartografia literária do medo e da solidão -, Vásquez retrata os efeitos da violência do narcotráfico na vida emocional das pessoas, da desintegração do tecido social, e as estratégias de que os colombianos se socorreram para sobreviver ao medo que a violência sanguinária dos cartéis foi construindo. O tema do romance não é o narcotráfico, antes as emoções humanas, as relações entre as pessoas, as circunstâncias pessoais em que tudo acontece. O autor procura dar uma certa ordem à experiência humana, não simplificando o mundo, mas respeitando a sua complexidade. Como quem pega numa porção de barro informe, ao mesmo tempo obscuro e ameaçador. "O que eu fiz foi iluminar um pouco, através dessa longa meditação que é a escrita de um romance, uma época recente que me parece especialmente problemática. A época do narcoterrorismo, da violência gerada por Pablo Escobar e pelo cartel de Medellín marcou as nossas vidas, modificou-as, e eu queria perguntar-me como é que isso aconteceu."

Este é um romance preocupado com o facto de a memória ser falível, ainda para mais quando se trata de um passado traumático, pois temos tendência, os países e os indivíduos, a enterrar as más recordações, a retocá-las para que não nos provoquem mais dor. "O lado público dos anos dessa violência está muito presente no imaginário colombiano", diz Juan Gabriel Vásquez, "mas o lado emocional vai desaparecendo lentamente." São os romancistas quem o preserva: "Para saber o que se passava na vida pública há os historiadores; para conhecer o rasto que esses feitos deixaram na nossa sensibilidade, na nossa moral e nas nossas emoções, há os romancistas."

A memória de um hipopótamo

Uma notícia verídica e a fotografia de um hipopótamo abatido parecem ser os detonadores da narração de O Barulho das Coisas ao Cair. Era um dos hipopótamos que anos antes tinha fugido do célebre Jardim Zoológico privado de Pablo Escobar, localizado na sua não menos célebre e enorme propriedade, a Hacienda Nápoles. Este zoológico privado foi aceite e tolerado pelo poder judicial, e eram comuns as visitas de crianças, que chegavam um pouco de toda a Colômbia para ver os animais exóticos. (O pequeno Juan Gabriel Vásquez visitou-o também, às escondidas dos pais.)

O hipopótamo abatido surge no romance como uma metáfora desses anos. "Havia meses que eu estava a escrever mas sentia a história longe. A fotografia do hipopótamo fez-me recordar de uma forma muito vívida a morte de Pablo Escobar, e seguindo esse caminho comecei a recordar o terrorismo dos anos 80 e 90; logo surgiram muitas emoções e lembranças reprimidas desde a minha saída da Colômbia em 1996. Então apareceu a voz do narrador, Antonio Yammara, e o romance começou a sua marcha."

Mas a sombra de Escobar continua a pairar sobre a população colombiana, e a catarse desses anos está longe de ter sido feita. Para o ano cumpre-se o vigésimo aniversário da sua morte, e Vásquez é da opinião de que só agora se começou a perceber como foi possível que tivesse surgido uma figura como a de Pablo Escobar. "Mas não aprendemos grande coisa, e a prova é que hoje em dia há em Medellín uma caderneta de cromos [de narcotraficantes] que as crianças coleccionam com paixão, como se se tratassem de cromos de futebolistas ou de estrelas de cinema."

Foi, muito provavelmente, a perspectiva que a distância e o tempo dão o que permitiu a Juan Gabriel Vásquez escrever tão intensamente sobre a Colômbia. "Quando não tinha ainda essa distância, era-me quase impossível: o livro que escrevi nessa época, por exemplo, é uma colecção de contos cuja acção tem lugar na França e na Bélgica, os países onde vivi antes de chegar aqui a Barcelona." Há nos romances de Vásquez uma fixação no passado, como se os mortos lhe interessassem mais do que os vivos, ou dito de outra maneira, o efeito que o passado teve sobre quem sobreviveu. Ele confirma: "O meu lugar de trabalho está cheio de frases como estas: ‘O passado não está morto, nem sequer passou ainda' (Faulkner), ou ‘A memória é a coluna vertebral e moral da literatura' (Sebald). E há outras mais."

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