O teatro sem artifícios

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Emmanuel Demarcy-Mota faz de "Casimiro e Carolina", de Odon von Horvath, um grande fresco teatral, impondo uma leitura pessimista no que podia ser só melancolia. Hoje no S. João, e dias 15 e 16 no D. Maria, o futuro que não se imaginava em 1929 alerta-nos para o presente em que vivemos

À frente do importante Théâtre de le Ville, em Paris, Emmanuel Demarcy- Mota, 40 anos, filho de pai francês e mãe portuguesa, habita o teatro desde cedo. A sua relação com os textos fundamentais da dramaturgia mundial, dos quais já vimos "Seis personagens em busca de um autor", de Pirandello (CCB, 2003), "Rinoceronte", de Ionesco (S. João e D. Maria, 2006), "Tanto Amor Desperdiçado (D. Maria, 2007), de Shakespeare e "Homem por Homem", de Brecht (D. Maria, 2007), está novamente presente em "Casimiro e Carolina", de Odon von Horvath, peça com a qual regressa ao Festival de Almada, depois de Pirandello e Ionesco. Estreada em 2009, mas pensada "muito antes da crise", diz-nos em entrevista, "é uma peça que prevê o que se vai passar". Situada em 1929, portanto, anunciando a ascensão do nazismo, reflecte sobre as relações entre diferentes figuras que Demarcy- Mota não quer ver tratadas "pela melancolia", numa festa da cerveja numa floresta. Temas como o desemprego e as dificuldades económicas, a ambição e a inveja, estão presentes num texto que, segundo o encenador "não precisa ser actualizado, é actual". A pequena história cruza-se com a grande história, num exercício de reflexão que o encenador utiliza para se dirigir à responsabilidade de cada um na previsão da catástrofe. A escolha, diz Demarcy-Mota, "implica uma responsabilidade". "Fazer teatro também", acrescenta.

É comum encontrarmos no seu trabalho uma distância em relação ao que é proposto pelo autor, mas não estamos exactamente perante uma simplificação dos textos, que facilite a sua inscrição contemporânea. É uma preocupação?

Não me interessa falar senão das intuições. Esta peça interessa-me por isso, primeiro as intuições, depois o trabalho sobre elas. Discuto muito com François Regnault, o tradutor, vemos as versões em inglês, em alemão, e escolhemos as palavras em francês que sirvam o que queremos dizer. Há uma responsabilidade e é por isso que é um trabalho esgotante que dura dois ou três meses. Depois retiro todas as didascálias, todas as descrições, nem mesmo os actores as sabem, ficam só os diálogos.

Nessa recusa de transposição para a contemporaneidade, permanecemos num território abstracto, sem um tempo, quase imaginário. Como se todas as suas peças habitassem uma terra de ninguém.

A questão me interessa, nesta peça, é o que significa 1929 hoje. Não me apetece recriar 1929, não sei o que é, não estava lá. E o hoje, por si só, também não me interessa, preciso dos dois. Preciso do concreto. No caso dos figurinos, por exemplo - e tenho grandes discussões com a figurinista -, há personagens que têm ténis comprados na feira da ladra e, ao lado, uma que tem um chapéu do fim do século XIX.

Sugerindo um diálogo com o tempo teatral e não com o tempo real?

É uma questão difícil para mim. É o tempo teatral que me leva à realidade, é o tempo teatral que também dá conta da realidade. O que me interessa nesta peça não é a melancolia, mas o pessimismo que a peça transporta.

De qualquer forma, há sempre um lugar privilegiado para o sentido das palavras. A escolha dos autores é feita sabendo também o poder das palavras, como as trabalhar e apresentar? Sentimos sempre que, no fim, o essencial, o que se queria dar a ver, era o texto, e as imagens estão lá para servir...

Para servir ou estar ao lado, não estou certo.

Li numa entrevista que se tivesse feito esta peça há uns anos seria sobre a juventude.

É verdade. É uma peça que conheço há muito tempo. Que gostava de ter montado quando tinha 25 anos.

Podem montar-se textos destes quando não se tem ainda uma experiência de vida tão rica, tão múltipla?

Se aos 25 ou 30 tivesse feito esta peça, seria, de facto, sobre a juventude, o protagonista seria um jovem, e não um actor de 60 anos, que é frágil apenas aparentemente. Talvez não resultasse, não sei. Não haveria uma pesquisa precisa sobre o peso de uma existência, e sobretudo existência no início do século XX. Para mim, todas as questões da peça estão presentes na imagem inicial, podíamos terminar o espectáculo ali. Aqui estão eles, em grupo, atrás umas sombras, um fresco. Podíamos agradecer, dizer "boa noite", fazer descer a cortina e ir embora.

Porque procura, também, um trabalho ao nível da imagem, mas uma imagem rente à carne, perto do osso?

Sim, onde os actores se expõem. É um espectáculo fisicamente muito duro. Mas é preciso que isso passe pelo cenário, pela maquinaria de cena, pelo actor, que exista em todo o espectáculo e não apenas num aspecto. O cenário não me interessa. Fiz espectáculos onde o cenário falhou, não era o que queria. Há coisas de que gosto e outras de que não gosto. Nesta gosto de quase tudo. É como se o cenário fosse uma máquina de destruição. É preciso que se passe qualquer coisa física entre a maquinaria e o actor. Para que se torne real? [longa pausa]

Para que encontre uma realidade, se é para ser real, não sei. Não sei o que é o real. Porque quando falamos de artificial, e de artificialidade, é sempre ambicionando uma proximidade com o real.

Absolutamente. Gosto imenso do que dizia Grotowski sobre o artificial. Na mesma palavra está contido o termo "arte" e "fictício". É uma palavra com diferentes significados. Há o lado do artifício, que é falso, que está longe da realidade, há "artefacto", e é partindo disso que trabalho. A imagem está ao serviço do texto, talvez. Mas eu não o diria, ou pelo menos não desse modo. De qualquer forma, não acredito num teatro onde exista uma fabricação da imagem, o teatro deve sustentar-se numa outra coisa. Já o experimentei, em três ou quatro momentos, mas são dois campos paralelos.

O que se sente nas suas peças é que se pede aos espectadores para procurarem não tanto compreender, mas estarem presentes e dialogar com o que é proposto. Como se fosse mais importante ser-se intuitivo antes de se ser racional.

Sim, e isso passa muito pela minha experiência de espectador. Comecei a ver espectáculos muito novo, e houve muitos que, mesmo não os compreendendo, me deixavam muito feliz, porque me perguntavam o que havia ali que eu pudesse investir. Só mais tarde é que surge a elaboração a partir da intuição.

Há, ao mesmo tempo, um trabalho sobre a hierarquia dos elementos cénicos, anulando uma construção em pirâmide?

Completamente. Mas eu gosto de contar histórias. E gosto que mas contem. Podemos contá-las de diferentes formas, pelo inverso, linearmente, mas as histórias são importantes. E essa é uma noção que foi muito criticada, por exemplo, em França, porque implicava contar as histórias entendidas como valores tradicionais. Eu não acredito nisso. O efeito teatral pode passar por contar as histórias.

Quando falamos de texto falamos de um texto enquanto elemento escrito porque, depois, há todo o texto que existe no corpo, na luz...

Sim, quando falo do texto falo no sentido primário das palavras, a presença das palavras, a sonoridade das palavras. Adoro as sonoridades, as vozes diferentes dos actores que contrastam, que são particulares. Quando ensaio penso no som e no modo como desenha uma arquitectura espacial. Depois há o sentido da frase e o sentido geral. Mas gosto de contar histórias e de voltar a elas. Por exemplo, no próximo ano voltarei a "Rinoceronte", de Ionesco. Quero contá-la, mas ao contrário.

Porque a sua relação com o texto mudou?

Mudou a minha relação com o próprio espectáculo. A peça conta uma catástrofe, e quero partir, não da previsão dessa catástrofe, mas do fim, quando o homem está sozinho. Quero trabalhar sobre a ideia da cumplicidade, quando já se sabe o que aconteceu e qual a nossa responsabilidade hoje, quando já conhecemos a catástrofe. Penso que a conhecemos, não vale a pena lamentarmo-nos. Os franceses lamentam-se muito, os portugueses também. É uma questão que diz muito a autores da Europa Central, como Ionesco, de pai romeno e mãe francesa, mas também Horvath e Kafka.

Pegando nessa ideia de cumplicidade e catástrofe: em "Casimiro e Carolina", se reconhecemos que há a possibilidade de escolher, não podemos dizer que fomos surpreendidos pelo que aconteceu. A sua apresentação é uma reflexão sobre o modo como o teatro, ou o dispositivo teatral, se pode dirigir aos outros e clamar que a inocência não é uma desculpa?

Sim. A inocência, pelo menos em francês tem um sentido ligado à infância e que está ligado à capacidade de maravilhamento. Interessa-me a ingenuidade no sentido não pejorativo mas no grande sentido do termo. Da grande ingenuidade do homem perante as grandes questões: o que é o céu, o que são as estrelas, porque é que a terra é redonda? Os cientistas fazem as mesmas perguntas que as crianças quando olham o mundo. Para mim, o teatro está entre a infância e o científico, nas questões que coloca ao mundo. Não há senão hipóteses. E um espectáculo transporta uma nova hipótese sobre uma questão. Ionesco e Horvath tinham, para mim, guardada uma parte da infância. Horvath ainda tem uma parte da infância nele, que vai ser destruída. Quando Ionesco escreve que viu o seu pai transformar-se em monstro, na Roménia fascista, é de alguém que, em criança, vê a infância ser transformada. Isso é uma questão muito pessoal que se relaciona com o olhar que achamos que as crianças têm, mas que não é o olhar que elas mesmas têm sobre o mundo.

O que propõe é uma reflexão do papel do espectador, da sua responsabilidade em trabalhar com aquilo que lhe é apresentado, não se colocando à margem?

Exactamente. Quando fiz "Homem por Homem" houve pessoas que saíram e me disseram que era complicado, perguntaram-me o que deviam pensar. Foi a primeira vez que me irritei a sério. "Que quer Galy Gay? Ele quer ser outro homem, ele quer ser um monstro?", disseram-me. "Atenção, tens o direito de reflectir", respondi. Estamos numa época onde o teatro, pelo texto - e falo por mim que não sou coreógrafo, não sou artista visual, e preciso do texto, não o sei fazer de outra forma - me permite interrogar o outro sobre o que eu penso que pode ser importante. Ou então dizemos que Horvath não tem interesse, nem Ionesco, nem Brecht, e que as questões que eles colocam não são pertinentes.

Seria necessário encontrar autores contemporâneos que trabalhassem sobre os mesmos temas com um ponto de vista diferente.

Mas essa questão do lugar do espectador face a essas imagens está no modo como o espectáculo é construído, nesse lugar que é o teatro-edifício. E isso é o mais importante. Às vezes saio e penso que os espectadores não estavam lá. Não quero ser dogmático mas se isso persistir, esse abaixamento do nível de exigência, então será o político que vai ganhar na discussão do lugar da arte na sociedade. E o papel do espectador é fundamental. É preciso um pouco de arrojo. Discutem-se apenas as formas, mas poucas vezes o sentido. Não estou a falar da qualidade artística, mas do debate artístico.

Isso porque as pessoas têm uma memória de peixe...?

Sim, é por isso que monto estas peças, porque tenho a impressão que as pessoas ficam surpresas quando se fala de crise, que se esquecem que houve uma II Guerra Mundial, que a Shoah aconteceu. Paremos. Um pouco de dignidade, por favor. Há escolhas difíceis a fazer e devem ser difíceis - se forem fáceis não são importantes.

A escolha pede-nos uma posição?

Sim, uma posição que vai criar contrastes e dificuldades em cada um. As coisas discutem-se. A televisão impõe a ausência de liberdade individual, mas a escolha deve ser definida pelas dificuldades. Quando Bérenger diz em "Rinoceronte", que não pode ser um rinoceronte, quer mas não pode, isso interessa-me. Se uma pessoa diz que não pode ser racista ou anti-semita em vez de dizer que não o quer ser, essa é uma escolha moral. E, aí, preciso de um autor que trabalhe isto de verdade, e estes autores tiveram tempo de as pensar.

Há uma distância temporal em relação ao texto que nos permite identificar esse tratamento dado ao pensamento.

Sim. Por vezes gosto que as coisas não sejam completamente realistas, e que existam formas que quando as vemos não resultem numa discussão naturalista e teatral. É isso que procuro.

Há um natural no teatro?

Não. Preciso que as coisas tenham uma forma. Quando aos 18 anos vi "O Sétimo Selo", do Bergman, ou os filmes do Visconti, estava perante uma "mise-en-forme", mas hoje o que se discute é o gosto, a estética. Há espectáculos dos quais gosto imenso mas que detesto. Gosto da forma mas não gosto da estética, porque reconheço a intenção. Que pluralidades de sentido são pesquisadas? À força de se criarem etiquetas, como em Avignon - teatro-dança, teatro-texto, teatropoema, teatro-visual -, quando é só teatro parece uma coisa jurássica, são dinossauros. Quando Claude Régy faz isso [com "Ode Marítima"], fá-lo porque tem 85 anos, mas se tivesse 40 ia ter um problema. Escolher fazer Régy para 600 pessoas no Théâtre de la Ville é um acto político, porque não é uma peça, é um poema que as pessoas conhecem mal - mesmo em Portugal, onde todos dizem ter lido Pessoa mas não o leram realmente -, que merece 600 pessoas e não 200. Tenho a responsabilidade de o fazer, não apenas como encenador, mas como director desse teatro. Houve sete mil pessoas na Place du Châtelet que o viram, em Avignon foram quatro mil. Como fazer o nosso trabalho, então? Devemos responder às coisas, devemos ser responsáveis - adoro essa palavra.

A ideia de ritual, que o teatro carregou, é algo que lhe interessa? Olhando para algumas das imagens que cria, fica a sensação de estarmos perante quadros, de encenações ritualistas. E, no entanto, parece haver uma proximidade ao ritual que depois nos leva para outra zona, menos clara.

Poderia dizer que isso não me interessa, mas é isso. Há um ritual profundo na pintura, por exemplo, cujos ecos das minhas influências pictóricas estão presentes, de Rembrant a Brueghel, autores que tinham uma grande liberdade e que explodiram com a imagem. Mas não quero fazer crer que há um ritual. É um artificio que não me interessa e falseia as coisas porque as legitima de forma errada. Vejo teatro desde os cinco anos. Tirar os sapatos antes de subir ao palco, como na tenda da Ariane Mnouchkine, fazer as pessoas esperar à porta do Théâtre des Bouffes du Nord para que se veja que há um ritual, são rituais que estão já desconstruídos e descodificados, para mim. Isso não me interessa. É muito claro que é preciso uma distância para se ser verdadeiro, e que é isso que dá a liberdade. É preciso criar formas para as coisas aparecerem, e digo-o tanto em relação ao futuro do teatro como ao seu sentido actual. Mas é verdade que não é o discurso contemporâneo que me interessa. Há uma ritualização, sim, mas não a fabricação de um ritual. É preciso ir mais longe, o ritual existe depois, não é antes, não se convoca um ritual. É uma questão muito pessoal, muito profunda, que dita também uma forma de fazer um espectáculo, de preparar uma peça.

O Ípsilon viajou a convite do Festival de Teatro de Almada

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