Thomas Walgrave, um belga em Lisboa

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É o futuro director do Alkantara festival. Thomas Walgrave vai escolher o que vamos ver em 2010 mas, por enquanto, ainda é cedo para falar de programação. O que sabemos, então? Que um festival não tem que ser um "best-of"

Há quatro anos que anda entre Portugal, Bélgica e o resto do mundo. Cada vez menos vai a Antuérpia, cidade onde nasceu e cresceu. Desde 2005 que a sua casa é Portugal.

Thomas Walgrave, 43 anos, fundador da companhia flamenga Tg Stan (que existe desde 1989), vai mesmo ter que passar mais tempo por cá, pelo menos em 2010, ano do próximo Alkantara, o mais importante festival de dança contemporânea português (que se tem vindo a alargar ao teatro).

O cenógrafo/desenhador de luzes, formado em História da Arte e Antropologia, vai estrear-se na direcção de um festival, substituindo Mark Deputter, agora director do Teatro Maria Matos, em Lisboa - conhecem-se desde 1989, estava Deputter no espaço STUC, em Lovaina, Bélgica.

Estamos no piso térreo do Café Império, em Lisboa, a parte agora "modernizada" do edifício projectado pelo arquitecto Cassiano Branco nos anos 1950. Walgrave olha para baixo, onde está o painel de Jorge Barrada: adora este sítio. É aqui que lembra que a sua mudança não foi de Antuérpia para Lisboa, foi de Bruxelas para Lisboa. Há anos que vivia na capital belga porque Antuérpia é uma cidade "complicada para viver" - "fechada, tem um peso forte da extrema-direita, é outro mundo". Como os Tg Stan não têm sala própria e estreiam em todo o lado, ele podia "viver onde quiser".

A primeira vez que veio a Portugal foi para passar férias, tinha 18 anos e não se lembra "muito bem". Portugal faz parte da "mitologia da família" porque um dos avós tem um apelido que será de origem portuguesa. De qualquer modo, "para um belga, Portugal tem qualquer coisa de familiar". É uma familiaridade mais intuitiva do que racional, "tem qualquer coisa a ver com as pessoas, com a sua descrição e relação entre elas".

Regressou em 1997 para fazer uma "espécie de mini-festival Stan", no Centro Cultural de Belém (CCB), com cinco espectáculos e um workshop - Mark Deputter era programador de dança do CCB, Jorge Silva Melo de teatro.

Na altura trouxeram Henrik Ibsen ("O Inimigo Público", a que deram o título "JDX-A Public Enemy"), Gorki ("Os Últimos"), as peças "Yesterday We Will" ("Ontem Faremos") e "One 2 Life" (sobre textos escritos por George Jackson na prisão), "Buraco Negro" e "Cancro", do encenador holandês Gerardjan Rjjnders. 

Foi aqui e assim que começou a relação dos Stan com Portugal, e nasceu uma geração que seria influenciada por eles ("ou não; há algumas pessoas que contrariaram" essa influência, diz Thomas): Tiago Rodrigues, ainda hoje colaborador do grupo, Dinarte Branco, Pedro Penim, António Simão, Cristina Bizarro... A ideia do workshop era apresentar no ano seguinte um espectáculo com os actores portugueses - "Point Blank", a partir de "Platonov", de Tchekov -, estreado no Citemor. Os Stan foram regressando, mas não com tanta intensidade como naquele 1997 e nos três anos seguintes.

Cena portuguesa: improvisar

Thomas Walgrave conhece alguns dos elementos da companhia flamenga desde os 15 anos. Trabalhava numa das casas de cultura que nasceram nos anos 1980 e se tornaram decisivas na Bélgica - "eram o exemplo de espaços não controlados pelo Governo". Tinha 23 anos e começou a colaborar com os Stan gradualmente, até que foi ficando. "As funções não eram bem definidas, toda a gente fazia de tudo. Agora já não é bem assim". Foi ficando, como foi ficando em Portugal, primeiro tendo casa cá e lá, depois largando a casa na Bélgica. Isto, como dissémos, a partir de 2005. "Tinha a ideia de fazer um ano sabático. Estava há 15 anos com a mesma companhia e tinha vontade de trabalhar com outras pessoas. Depois passámos dois meses a trabalhar aqui no 'Berenice' [a partir de Racine, apresentado na Casa dos Dias d'Água], e também houve uma história pessoal. Tive imensa sorte, foi tudo muito rápido, tive uma série de convites."

De Lúcia Sigalho ao Alkantara, de Tiago Rodrigues ao espectáculo a solo de Ricardo Araújo Pereira, Thomas Walgrave foi colaborando como cenógrafo/desenhador de luz com vários criadores. Hoje já pode dizer que conhece a paisagem portuguesa, as suas vantagens e desvantagens. "Venho de uma cena cultural que tem muito mais dinheiro e isso, às vezes, complica as coisas. Aqui grande parte do trabalho é encontrar dinheiro. Portugal é um país em que se está sempre obrigado a improvisar, muito mais do que na Bélgica. Não conheço nenhum país em que se possa improvisar tão facilmente como aqui: tem a ver com cenários, transportes, com um dia antes de o espectáculo estrear pensares que isto vai ser um desastre mas de repente todos os elementos se encontram e batem certo."

Walgrave gosta do "caos", e agora quando regressa à Bélgica faz-lhe impressão "a situação mimada". Era bom, porém, que em Portugal houvesse um "bocadinho mais de dinheiro para fazer coisas. Não acho a pobreza muito romântica. As pessoas que trabalham neste sistema desenvolvem mais habilidades para desenvolver coisas com poucos meios, e o Alkantara é um bom exemplo disso. Outros festivais na Europa fazem o mesmo com muito mais dinheiro."

Nota em Portugal uma "cena artística que não está completamente instalada, e que tem uma grande fome em fazer coisas". Exemplos: estruturas como o Rumo do Fumo, coreógrafos como Miguel Pereira ou Vera Mantero já trabalham há anos, mas têm uma maneira de estar na sua arte "muito fresca" - uma maneira de procurarem desafios e de se relacionarem uns com os outros, sobretudo na dança, que Thomas acha "muito forte". "São ligados, vão ver os trabalhos uns dos outros e há um diálogo. No teatro é mais complicado, porque o peso das estruturas é antigo, mas começa a acontecer na geração do Tiago Rodrigues, da Truta, dos Praga, da Patrícia Portela. Tenho trabalhado muito em França e vê-se o peso da tradição, do passado: para quem quer sair e encontrar uma ligação com vanguarda europeia é difícil."

Lista de "best-of" não

Pode ter sido pela sua ligação a Portugal, pode ter sido pela sua ligação ao Alkantara, por nada ou tudo isto que foi convidado para dirigir este festival que surgiu do Danças na Cidade, também bienal, também dirigido por Mark Deputter. Thomas acha que não é a ele que cabe responder. Sabe que teve papel importante nos espectáculos que fez com o Alkantara (na última edição, "harS", de Aydin Teker, ou "DOO", de Miguel Pereira) e isso tem sobretudo a ver com aquilo a que ele chama "a dramaturgia, pensar os projectos".

Por exemplo, no projecto Lugares Imaginários, que começou em 2007, cinco equipas pluridisciplinares de vários países trabalharam sobre o tema da cidade mediterrânica e a sua história de urbanismo, fazendo depois residências artísticas e apresentações em várias cidades. Walgrave foi cenógrafo/ desenhador de luzes de três espectáculos deste projecto: "Yesterday's man" de Rabih Mroué, Tiago Rodrigues e Tony Chakar; "F A Q (Frequently Asked Questions)" de Antonio Tagliarini, Carlo Antonio Borghi, Danya Hammoud e Ornella d'Agostino; "La grammaire d'ENOS", de Cristiano Carpanini. Mas isso, como já era habitual com os Stan, implicou mais do que participação na sua "área", implicou "fazer perguntas essenciais sobre o espectáculo": "Venho de uma tradição em que é o contrário de cada um ter a sua caixinha."

O último Alkantara foi "muito sobre a memória de ver um espectáculo". Portanto ele e Mark conversaram bastante sobre a "função de um festival numa cidade". Mais do que aquilo que deve ser, o futuro director sabe o que um festival não deve ser: "uma lista de 'best of'" de espectáculos.

Ainda é cedo para revelar o que quer que seja. Thomas pode apenas dizer que um "programa tem a ver com a dinâmica de uma cena local" e a sua relação com o "que está a acontecer a nível internacional". "Há mais razões para apresentar um espectáculo do que simplesmente a sua qualidade." Como por exemplo? "Pôr a mexer desenvolvimentos locais."

E Lisboa? Do que precisa do Alkantara? "Quando falamos de uma certa frescura, o Alkantara teve um papel importante e deve continuar a ter esse papel. A paisagem local está a mudar: o facto de o Mark estar no Maria Matos e ter uma programação regular, de ter espectáculos que antes só aconteciam a nível do festival muda a paisagem."

Isto não significa que o festival tenha que se redefinir, nem que agora exista concorrência - vão continuar a ser parceiros, ambos "precisam de uma cena artística saudável". Até porque a programação de um festival e de um teatro são coisas "completamente diferentes". Mas o facto de o Maria Matos, a Culturgest ou São Luiz terem espectáculos que poderiam ser apresentados no Alkantara "obriga a definir melhor a função de um festival".

Uma coisa ele sabe: Portugal tem uma posição privilegiada com África e Brasil e essa vai continuar a ser uma parte importante do Alkantara. Por enquanto, anda a ver espectáculos.

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