Ele quer transformar o Teatro Maria Matos numa casa para os sem tecto

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Mark Deputter,o novo director do Maria Matos quer que os coreógrafos e encenadores portugueses que começaram a trabalhar nos últimos 15 anos e continuam sem tecto tenham uma casa. Quer também pensar essa casa como parte de uma rede à escala europeia. O projecto é ambicioso.

Foi responsável pela programação de dança do Centro Cultural de Belém entre 1996 e 2001 e, nos últimos anos, teve convites para trabalhar em estruturas tão sedutoras como o Tanzquartier de Viena, um dos maiores centros coreográficos da Europa, e o Kaaitheater, em Bruxelas. Não aceitou. Talvez quase o tenhamos imaginado para sempre à frente do Alkantara, a estrutura herdeira do Danças na Cidade, uma pequena plataforma destinada à promoção de uma nova geração de coreógrafos portugueses que fundou em 1993 com a antiga mulher, a bailarina e coreógrafa Mónica Lapa (1965-2001), que entretanto se transformou nisto: uma associação de baixo orçamento por detrás do mais importante festival de dança contemporânea em Portugal, a apresentar e coproduzir alguns dos mais relevantes criadores nacionais e internacionais do momento. Quando pensávamos que este podia ser um projecto de vida, aceitou o convite de Miguel Honrado, responsável pela Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural da Câmara Municipal de Lisboa (EGEAC), para se tornar no novo director do Teatro Municipal Maria Matos, substituindo um antecessor de perfil muito diferente: o actor e encenador Diogo Infante, que poderá passar para o Teatro Nacional Dona Maria II. Diogo Infante demitiu-se em Julho. Mark Deputter entra em funções hoje.

 

  

Não aceitou convites internacionais recentes para projectos de grande visibilidade e próximos da sua linha de programação. Porquê aceitar dirigir o Maria Matos, um teatro municipal?

 

   Havia várias razões para não aceitar esses convites, a mais óbvia das quais é que realmente gosto muito de viver cá. Acho que sou o único lisboeta que não se queixa da sua cidade [risos]. De qualquer forma, o convite do Kaaitheater chegou cedo de mais. Na altura não achei que tivesse feito o Alkantara, achei tudo muito tremido para sair. O outro convite, do Tanzquartier, foi muito mais recente, mas outro elemento importante é que tenho a sensação de tudo o que se faz cá faz uma diferença, enquanto quando se entra numa grande estrutura, com anos e anos de funcionamento e todos os meios possíveis, se podem mudar nuances, mas não fazer muitos projectos que possam mudar a realidade local. Isso atraime muito e o convite que me foi feito para o Maria Matos tem a ver com isso.

 

  

Em que sentido?

 

 

   O convite é para mudar, dar novos conteúdos ao teatro.

 

  Mudar em que direcção? Que tipo de novos conteúdos?

 

 
  
A ideia e foi esse o convite que me foi feito pelo Miguel [Honrado] em nome da EGEAC é fazer uma programação contemporânea. Uma casa para uma geração de criadores que é quase uma geração sem tecto. Pessoas que não começaram na altura em que cada companhia recebia o seu teatro, gente que está de vez em quando na Culturgest ou no CCB ou nem isso e que está a desenvolver o seu trabalho com muito poucos meios.

 

   Está a falar só de teatro? Ou de teatro e dança?

 

 
Dos dois, e se calhar até de música. O Miguel quer diversificar os teatros municipais. Já que esta cidade tem dois, o São Luiz e o Maria Matos, achou interessante dar-lhes perfis diferentes e eu acho que faz todo o sentido. O São Luiz, que é um teatro com mais história, no centro da cidade, com uma certa arquitectura, seria um teatro mais mainstream, enquanto o Maria Matos poderia vir a ser um teatro mais contemporâneo, mais virado para a inovação, a experimentação, uma coisa multidisciplinar e internacional. Porque a ideia é fazer também do Maria Matos um ponto de encontro entre a programação nacional e internacional. Com estes objectivos não acho estranho que o convite me tenha sido feito.

 

   É um projecto muito distinto do que tem sido o Maria Matos, um espaço que estava essencialmente morto e que nos últimos anos foi revitalizado com um programa mais próximo daquele que agora se prevê para o São Luiz.

 

  
Claro. É muito diferente. E conseguiu-se imensa coisa em três ou quatro anos. Construiuse um público, pôs-se o teatro de novo no mapa da cidade. E esse trabalho também poderia ter sido continuado. Imagino até que o Diogo, em certa medida, se se confirmar [como director] no Teatro Nacional, vai continuar o seu trabalho lá. E, se isto acontecer, trata-se, de facto, de uma reorganização do tecido cultural na área das artes do espectáculo em Lisboa.

 

   O tipo de diversificação que se encontra em quase todas as capitais da Europa.

 

  
Sim. E estava a faltar cá. [Em Lisboa] há a Culturgest, que faz parte desse trabalho, mas que é um teatro privado, com as suas limitações. Acho que o Maria Matos tem um lugar, e um lugar como teatro municipal: o que me interessa também é que um teatro municipal me faz pensar muito nas origens do teatro como lugar de discussão, o lugar onde a comunidade se reunia para falar, pensar, ouvir, sobre problemas sociais, a polis, a política...Implica, claramente, sair do esquema de uma peça que fica vários meses [em cena].Vamos ter que procurar uma programação mais dinâmica com exposições, conferências, concertos. E também gostava de convidar outras associações para pensar projectos. Além de uma programação contínua com artistas contemporâneos nacionais e internacionais, penso desenvolver um trabalho que, de vez em quando, funcione à volta de certos temas e junte pessoas de várias áreas: artistas, cientistas, políticos, filósofos...

 

    Falou numa geração de criadores sem tecto. Refere-se a que gerações, a que tipo de criadores?

 

 
    Pessoas que estão a começar a desenvolver trabalho neste momento e que vamos ter que descobrir nos próximos anos e pessoas que começaram nos últimos dez, 15 anos. Teatro Praga, Cão Solteiro, Miguel Moreira, Karnart, Tiago Rodrigues, Patrícia Portela, Tiago Guedes, Tânia Carvalho, Martim Pedroso. E gente [de gerações anteriores] como a Vera [Mantero], o João [Fiadeiro], o Miguel Pereira. Mesmo eles continuam a estar nas margens, continuam a pensar no seu trabalho projecto a projecto. A Mónica Calle continua a trabalhar num espaço de cinco metros por cinco e, quando quer fazer um Tchékov, pode fazêlo no máximo com três pessoas. Nunca teve oportunidade de fazer um Tchékov com 15 pessoas. Uma pessoa com imenso talento e que já mostrou que tem capacidade de fazer trabalhos importantes... Há muito pouca continuidade na vida destes criadores. Gostava de criar um centro onde estejam em casa.

 

    Levanta-se muitas vezes a questão do público, a ideia de que o teatro e a dança contemporâneos portugueses não têm público. 

 

  
Não é verdade. Atingem com facilidade um público. Não é como fazer uma peça com estrelas de televisão ou grandes estrelas de palco, claro, mas a última peça do Tiago Rodrigues, A Festa, esteve precisamente no Maria Matos durante um mês e todas as noites com entre 300 a 400 pessoas, uma prova de que é possível. Estou completamente convencido de que é possível pensar que esta geração vai ocupar o centro, um centro de que o Maria Matos faça parte.

 

 Portanto, não é o centro a deslocar-se para a margem é a margem a deslocar-se para o centro.

 

  
Sim. E o Maria Matos que, como disse há pouco, tem público, voltou a ser um dos palcos importantes da cidade, o que é uma grande vantagem. Não sei se vai ter cem por cento o mesmo público, mas uma parte poderá ficar, e há outras pessoas [para entrar]. O público do Alkantara, por exemplo.

 

   E que meios financeiros há para este projecto?

 

 
  
Houve uma redução, como aconteceu com toda a EGEAC. Nas condições em que Lisboa está neste momento, era provavelmente inevitável. Mas o orçamento que existe é perfeitamente possível. Não é o primeiro orçamento que gerou o primeiro impasse entre o Diogo e a EGEAC, que era muito baixo.

 

    Qual é o orçamento?

 

 
   
O de programação é de 550 mil euros para 2009. Depois há um orçamento de funcionamento, comunicação... Acho perfeitamente possível fazer um bom trabalho com este orçamento. É com certeza possível para alguém como eu, habituado a orçamentos como o do Alkantara [risos].

 

  Qual era o orçamento do Alkantara?

 

220 mil euros.

 

 
   E quantos espectáculos foram apresentados na última edição?

 

 
  
Fizemos 36 espectáculos, mas com comparticipações dos vários teatros. O orçamento global acabou por ser de 750 mil euros.

 

 
   O orçamento do Maria Matos é, então, um bom orçamento?

 

    
Comparado com o que tinha [no Alkantara] é uma grande diferença, comparado com o que há lá fora não. Mas vou candidatar o teatro a programas europeus. No Alkantara o limite dos nossos subsídios era o nacional, não podíamos pedir mais dinheiro lá fora porque não tínhamos a contrapartida nacional. No Maria Matos, como já existe um investimento nacional mais importante, podemos ir ainda mais longe no aumento de orçamento. Bastante mesmo.

 

 
   Quanto mais longe? Uma duplicação?

 

 
   
Sim, acho perfeitamente possível. E interessa, por exemplo, criar uma rede com outros teatros, nacionais e estrangeiros.

 

 
   Que parceiros internacionais há para o Maria Matos?

 

  
  
Há teatros municipais na Holanda, na Bélgica, na Alemanha, em França... O Théâtre de la Ville, de Paris, é um teatro municipal.

 

 
  É um teatro municipal, mas é um potencial parceiro? Há uma grande diferença de escala.

 

  
Sim, mas o conteúdo é mais importante do que a dimensão. O Alkantara também é parceiro do Kunsten Festival des Arts, de Bruxelas, que é um dos maiores festivais do mundo. Tem tudo a ver com a qualidade do trabalho e os objectivos de programação.

 

 
  Sendo tudo isso possível e até aparentemente fácil, por que é que os teatros portugueses nunca conseguiram chegar à criação efectiva dessas parcerias?

 

   
Pois, boa pergunta.... Não sei.Talvez tenha em primeiro lugar a ver com o conceito [vigente] do que é um teatro, um teatro municipal, neste caso. É um conceito para mim um bocado ultrapassado, que tem sido receber o dinheiro da câmara ou do governo e usálo para fazer uma programação.Um mundo um bocado estanque.Um trabalho que pensa a cidade como entidade fechada. Hoje em dia, e antes de mais em termos de financiamento, há muito mais oportunidades e níveis possíveis do que isso. Lisboa não está fechada sobre si, tem ligações com outras cidades. A sobrevivência cultural e até económica de Lisboa passa, precisamente, por ligações com outros territórios. Territórios mentais e físicos.

 

 
  De qualquer forma, chegado o momento em que a centralidade abre os braços à margem, alguma coisa está a mudar.

 

  
Sim, e foi razão para aceitar este convite. Para já, há dez anos, tanto o São Luiz como o Maria Matos eram espaços inexistentes, quase fechados. Neste momento funcionam a tempo inteiro, com orçamentos, equipas, programação contínua. É um grande passo.Aliás, sinto uma grande dinâmica cultural em Lisboa. Há muita coisa a acontecer. Lisboa está fora dos centros todos, mas tem a Culturgest, o CCB, o Museu Berardo, o Museu do Chiado, a Gulbenkian. Tem a Experimenta Design, o Alkantara, o Temps D'Image, os festivais de cinema como o DocLisboa e o Indie.Lisboa tem potencial. Não vamos comparar com Paris, que tem mais população do que o país inteiro, nem sequer com a Holanda ou a Bélgica, porque a Flandres já é quase toda uma grande cidade.Lisboa tem uma escala diferente, mas, se pensarmos no Sul da Europa... Nada mal.

 

 
  Falta mobilidade humana, entrada de massa criativa. Não há quase artistas estrangeiros a viver cá.

 

  
É uma perplexidade minha também. Lisboa oferece esta vantagem: liberdade para as pessoas fazerem o seu trabalho. Em Paris, por exemplo, faz-se qualquer coisa e ela fica logo em frente de todos os holofotes nem sempre é o melhor sítio para criar. Lisboa poderia ter esse papel. Acho que devia tomar como exemplo Berlim, que é uma cidade excêntrica, também relativamente pequena, que não tem muito dinheiro e que, mesmo assim, se tornou numa cidade para onde as pessoas querem ir viver. Tem tudo a ver com o facto de haver instituições a fazer um trabalho realmente inovador, a abrir portas às margens a nível nacional e internacional. Ao mesmo tempo, os investimentos que se fazem, não sendo maiores do que cá, são bem pensados, bem aplicados, com uma estratégia multiplicadora. Cá as estruturas nunca sabem como é que vão sobreviver ao próximo ano. O Alkantara: estamos em Outubro e não sabemos se em Janeiro vai haver um subsídio. Há imensas pessoas que ao longo dos anos já mostraram interesse em viver em Lisboa. Posso dar exemplos: a [coreógrafa norte-americana] Meg Stuart, o [coreógrafo francês] Jérôme Bell, o [encenador libanês] Rabih Mroué. No último Alkantara houve dois alunos da PARTS [uma das mais conhecidas escolas de dança da Europa] que disseram que queriam viver cá. Infelizmente, estas pessoas marcam reuniões para se informar e, infelizmente, temos que lhes dizer que é difícil.

 

  O Maria Matos tem um contributo a dar?

 

 
 
Pode ser uma parte da resposta. Vai com certeza reforçar a imagem de Lisboa como uma cidade onde as coisas acontecem.

 

 
  O Alkantara era quase um projecto de vida. Como é que se deixa um projecto desses?

 

 
  
É difícil. Mas ao mesmo tempo acho que, na cultura, a flexibilidade é uma coisa muito importante.Sempre acreditei que é importante que os projectos sobrevivam às pessoas. Em Portugal, a não ser nas instituições oficiais, do Estado, não há grande tradição de continuarem a viver para além das pessoas que lhes deram vida e uma alma. Mas é bom que comece a acontecer.É importante as organizações independentes começarem a ganhar a experiência de uma vida longa. 

 

Já tem um sucessor?

 

  
 
Ainda está a ser falado.

 

  O que é que se procura?

 

  
Alguém com capacidade de programar um grande festival internacional, que tem contactos e possa vir a ter mais. Um programador é alguém com capacidade de encontrar uma série de objectivos e um dado contexto. Não acredito muito no gosto pessoal de um programador.Faz parte de muitas decisões, claro, mas uma parte pequena. Pareceme mais importante perceber objectivos, torná-los realidade e, ao mesmo tempo, ter em conta o contexto, neste caso programar numa cidade como Lisboa, e programar com muitos parceiros.O objectivo é ser internacional e quase um comentário àquilo que já está presente na cidade.Aliás, estamos a pensar não numa pessoa mas numa equipa: neste momento o Alkantara tem um espaço o que significa que precisa de um investimento mais contínuo em termos de conteúdo e de angariação de fundos. É uma nova fase.

 

É possível cessar totalmente um vínculo pessoal?

 

É necessário. Tal como é necessário os pais deixarem os filhos ir, a dada altura. Neste momento o Alkantara é reconhecido, tem um subsídio, um relacionamento seguro com a Câmara Municipal de Lisboa, com os vários teatros que co-produzem o festival, várias redes internacionais a funcionar e apoios comunitários.Acho que neste momento é possível sair. Seria um enorme desgosto pensar que o projecto acabava mal agora, mas acho que não há motivos para pensar isso. E acho que cessar o meu vínculo, ainda que duro, é mesmo necessário. Não é a primeira vez que me acontece. Na Bélgica estive nove anos a trabalhar num centro cultural. Quando entrei, tinha três pessoas; quando saí tinha 15 e tudo pronto para construir um centro novo. Começaram a construí-lo no ano depois de eu sair. A alternativa é fazer a mesma coisa toda a vida e isso não é uma possibilidade. A quebra é necessária.  

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