No meu deserto há canções

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Filipe Ferreira

Dizem que é longo e velado o caminho até ao inconsciente. No meu caso são precisas umas escassas horas de sono. Muitas das canções que já escrevi apareceram-me em sonhos e para mim é estreita a ligação entre a música que faço e o mundo onírico. Soará estranho mas vou partilhar convosco a noite em que soube que tinha de gravar um disco novo.

Estava perdida no meio de um deserto onde a areia escaldada me batia nos tornozelos ao ritmo do vento. Deixei-me ficar quieta, com uma sensação de solidão, mas não de desamparo, que pacientemente aceitava sem me afligir. Ouvi chamar o meu nome. Olhei em volta à procura daquela voz mas no horizonte havia somente areia. A repetição do meu nome. E mais uma vez. E outra — Rita! Ouve! 

O meu coração batia agora a uma velocidade que doía e o meu corpo pesava o triplo. Olhei para cima e o céu pareceu-me muito perto, demasiado perto, e tinha a sensação de que poderia tocar-lhe. Estiquei o braço e fui sugada de imediato. Apareci numa sala onde o meu avô se encontrava no palco e eu na plateia. Ele gesticulava como se estivesse a dar uma palestra. Apercebi-me de que falava de bandas sonoras. Alguém no público resolveu perguntar-lhe: — Qual foi a que mais gostou de compor? Não fazia ideia de que o meu avô tinha sido compositor — Six Cars — respondeu ele. — Foi a música mais bonita que já escrevi, desde o tema principal às passagens nocturnas… foi um sopro ao meu ouvido e de repente estava tudo escrito na partitura. 

Abri os olhos incrédula! Senti de repente um enorme embaraço por nunca ter visto o tal Six Cars. A palestra terminou pouco depois com uma ovação de pé! Deixei a sala esvaziar e fui até à boca do palco. — Avô! — lancei eu baixinho. — Avô! 

Olhou para mim, sorriu e disse: — Olha a minha queridinha! 

Subi as escadas laterais e fui ter com ele emocionada. 

— Avô, como é que eu nunca soube disto? Nunca me contaste!

— Não podes saber tudo sobre mim. Levas-me a casa?

E lá fomos no meu carro por uma estrada que me era estranha pondo a conversa em dia. À medida que o tempo passava o céu ia-se tornando cada vez mais escuro, carregado e outra vez mais próximo. 

— Vem aí tempestade! Estas nuvens são de trovoada — disse ele. 

A paisagem tornou-se novamente inóspita, com a estrada transformada em areia, o mar cada vez mais próximo e uns montes que faziam lembrar o formato de gengibre. A chuva começou a cair, deixando-me a visão muito condicionada. Num segundo, apercebi-me que o mar estava a invadir a estrada por onde íamos passar e nesse momento uma onda gigante passou por cima de nós. — Pronto, queridinha, isto é semelhante ao fim do mundo. É assim. Repara nas algas, nos peixes, naquelas sereias e nos calhaus marítimos! São de uma beleza incomparável!

— Avô, acho que vamos morrer! 

— É bem provável mas ao menos desvendámos o mistério das sereias. Existem! 

— Avô, estou com medo. 

— Não tenhas medo, minha queridinha, um dia voltaremos tal qual como os dinossauros e tudo começará outra vez, mas antes canta-me as tuas novas canções.

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