De starlette a cineasta

Com Tom na Quinta exclamamos: “Finalmente!, Xavier Dolan”. A starlette mostra-se cineasta. Eis a violência do desejo no per­curso de quem vinha flirtando com a insus­ten­tável leveza. Estreia quinta-feira.

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A conversa estava a começar, foi interrompida: distribuidores japoneses em Paris entraram para observar um fenómeno em carne e osso, o realizador de um filme que há seis meses se mantinha em exibição em Tóquio: Laurence para Sempre (2012).

O realizador é este rapaz de 25 anos que nos últimos seis tem estado determinado a não abrandar o ritmo que o conduza ao destino que aos 16 prometeu à professora de francês: “Não quero morrer sem glória. Tenho sonhos de grandeza, sonhos que sei que vou realizar se tiver tempo para isso. Quero escrever grandes filmes, viajar. Tomar um copo, ser amigo dos mais importantes deste mundo. Quero fazer coisas importantes. Quero ser importante.” Tem tatuada numa perna uma citação de Cocteau, seu inspirador pela “liberdade”, “naïveté”, “poesia” e “romantismo”: “A l’impossible je suis tenu”.

Xavier Dolan tornou possível já uma parte do programa — é retratado como jovem que não abandona um cocktail sem acrescentar dois ou três números de telefone importantes à agenda (é claro que em relação a este tipo de informação que consta dos perfis que se traçam dele, como aquele do Libération que revelava as ambições do adolescente de 16 anos — perfil decepcionante, segundo ele —, Xavier pode bem tweetar “kiss my narcisistic ass”, como fez sobre o crítico David Rooney da Hollywood Reporter que tropeçou na sua “self adulation”). Para aferir da sua glória na morte, contudo, terá de esperar. Mas, aos 25 anos, aquele que foi um “actor criança” em anúncios farmacêuticos e que deu a voz, nas versões dobradas em francês, ao Jacob de Twilight e ao Ron Weasley de Harry Potter, já realizou cinco longas, entre 2009 (J’ai Tué Ma Mère) e 2014 (Mommy). E os adjectivos que o adornam são tão excêntricos como a linha capilar que muda de filme para filme. Mas hoje talvez se possa dizer que o realizador começa a levar de vencida a starlette que foi construída com desvelo pelo mais importante festival de cinema do mundo, o de Cannes, que estreou o seu primeiro filme na Quinzena dos Realizadores e depois, na secção Un Certain Regard, deu impulso a Amores Imaginários (2010) e Laurence para Sempre (2012), até lhe reservar lugar na competição oficial, este ano, com Mommy.

Justiça seja feita ao filho do subúrbio de Montréal, Quebeque: nunca escamoteou um “rendez-vous manqué” com o cinema, que o leva a flutuar a partir da infância, e isso é Mrs Doubtfire ou Titanic (o amor pelo guarda-roupa de Kate Winslet, mas fundamentalmente a intuição, aos oito anos, de que havia alguém por trás da câmara), a disparar para vários lados, quer seja O Piano, de Jane Campion, ou Gus Van Sant (animado por câmaras lentas à la Wong Kar-wai), e a revelar-se convertido dos últimos dias mencionando Morte em Veneza (Luchino Visconti, 1971) Paris, Texas (Wim Wenders, 1984), Os 400 Golpes (François Truffaut, 1959). Como um trabalho de reconstrução em tempo real, ao vivo, ali na Croisette.

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Tom e o seu agressor na sequência do campo de milho: desejo, movimento e fuga, algo que nunca se esta­biliza, algo sem nomeação

Mommy, o último filme, que estreia em Portugal no final deste ano, não fez dele o cineasta mais jovem a ganhar uma Palma de Ouro para longa-metragem, título que continua a pertencer a Steven Soderbergh, 26 anos no momento de Sexo, Mentiras e Vídeo (1989). Mas, Prémio do Júri no Palmarés 2014, vai ajudar a fixar Dolan. Se calhar, vai começar por fazer Dolan fixar-se. À beira do festival, dizia ao Ípsilon, já os distribuidores japoneses se tinham ido embora, saciada a sede de fenómenos: “Claro que sou jovem, mas adoro quando as pessoas me tratam como adulto. A minha relação com Cannes é a de um recém-chegado que quer ser tratado como um adulto e não como criança porque não faz filmes para crianças. Às vezes senti que em Cannes os meus filmes eram avaliados como se avaliam trabalhos de casa — mas também não queremos que as pessoas esqueçam completamente que somos jovens e que não estamos a fazer isto há uma vida. Não sei em que lugar estou, para ser sincero, no que respeita ao olhar das pessoas. Acho que quero que julguem os filmes por aquilo que são.” Dolan encontrou-se, provavelmente. A sua felicidade e as suas lágrimas em Cannes diziam de uma certa serenidade. Podemos também nós fixar o nosso olhar, e começar a falar agora de um cineasta.

Começar de novo

Na realidade, o filme de um começar de novo, como uma primeira vez, não é Mommy. Este veio confirmar. Esse filme é Tom na Quinta, apresentado na competição de Veneza 2013 — é esse que quinta-feira se estreia em Portugal. É com esse que podemos exclamar “Finalmente!, Xavier Dolan”, pela gravidade que suspende o per­curso de alguém que até aqui, nos filmes anteriores, não saíra da insus­ten­tável lev­eza que lhe valia o título de enfant-terrible do Que­beque. Talvez agora se possa sacudir o fol­clore, deixar cair automatismos — isto é alerta para os que olham —, perder o pudor e chamar-lhe cineasta.

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Três personagens, violência e mentira. Tom chega à quinta para o funeral do companheiro, filho de Agathe e irmão de Francis, que obriga Tom a uma encenação: esconder da mãe a sexualidade do irmão

“Para já é um filme diferente dos outros, porque é um ‘filme de género’, é um thriller psicológico, quando antes eu andava mais no território do drama ou do romance — se Tom na Quinta é um romance, então é um romance tortuoso. Para mim, sim, é um thriller, por isso tem de haver mais tensão do que dança”, diz Dolan.

Mas também há Xavier, que aparece no início, plano aéreo ao som de The Windmills of your mind, versão da canção que adocicou o affair entre Steve McQueen e Faye Dunaway no Caso Thomas Crown. É uma entrada que possui o arrebatamento cal­cu­lada­mente despen­teado que se espera da sua persona. Mas o filme parece descobrir outras coisas, e Xavier parece descobrir-se em outras coisas. “Estou mais velho, acho. E aprendi ao ver outros actores a actuarem. De filme para filme aprende-se, tenta-se não repetir os erros.”

No início, uma peça de teatro de Michel Marc Bouchard, um huis-clos rural, que Dolan viu em 2011. Era a oportunidade, com a adaptação, de passar a algo de urgente, rápido, depois do peso que haviam sido a preparação e a rodagem de Laurence para Sempre. Três personagens cúmplices, voluntárias e involuntárias, na violência e na mentira: Tom (Xavier Dolan), Francis (Pierre-Yves Cardinal), Agathe (Lise Roy). O primeiro chega à quinta para o funeral do companheiro, que era filho de Agathe (a mãe não sabia que esse filho era homossexual) e irmão de Francis, que obriga Tom a participar numa encenação, esconder da mãe a sexualidade do irmão — mas algo de letal se revela no jogo, o desejo entre Francis e Tom, um vio­len­tando, o outro submetendo-se, cada um fazendo assim o luto. Dolan trabalhou com Bouchard na adaptação, e se quiséssemos resumir superficialmente diríamos que se tratou de mostrar com o filme aquilo que as personagens diziam que tinham feito fora da cozinha, o espaço único da dezenas de cenas da peça: que tinham ido à igreja, que tinham ido aos campos de milho... Se fosse só assim, não estaríamos a passar pelo filme. Porque o que é decisivo não é a multiplicação de cenas, é a lógica de subjugação: na primeira em que aparece Francis, o irmão, é escuro, como se fosse um fantasma, como se fosse um pesadelo. Francis faz, logo aí, Tom refém do seu jogo. E é como se o espectador ficasse subjugado à história, àquele desejo, ao desejo — “música” hitchcockiana para os nossos ouvidos, e Dolan, aliás, diz que a ouve desde logo na composição de Gabriel Yared.

“É claro que o filme é sobre um jovem em perda pela dor que consente em ser refém. Agora, estaria eu consciente de que a partir dessa cena isso teria um efeito no espectador...? Para mim essa é uma cena em que as regras do jogo são estabelecidas: ‘se quiseres ficar aqui, tens de jogar o jogo’. A determinada altura, Tom tem a oportunidade de partir. Mas não aproveita essa oportunidade, e torna-se refém voluntário... acho que é aí, e isso acontece mais tarde no filme, que nos tornamos todos reféns, como Tom.”

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Xavier Dolan em Cannes 2014, na apresentação de "Mommy": a confirmação, anunciada por "Tom na Quinta", de que o cineasta se impôs à starlette

No início, Tom escreve ao namorado morto. Não consegue chorar, perdeu uma parte de si próprio e com ela o sinónimo da palavra tristeza. Tom não sabe dizer. Tom não consegue dizer-se. Toda a tensão em Tom na Quinta é alimentada pela pura manifestação do desejo — Tom e Francis, movimento e fuga, algo que nunca se esta­biliza, sem nomeação. De outra forma, Tom teria de admitir que nele vibraria o síndrome de Estocolmo, a submissão voluntária à opressão do outro. Mas o que é violento é a virgindade perante a violência, e é por isso que o cineasta arrisca, por sus­pender o filme nesse fluxo. Quando a consciência chega, à personagem e ao espectador, o filme acaba. O espectador faz a descoberta de si próprio nesse instante. Até aí, não há GPS a ajudar, as cenas já começaram antes de termos ali chegado, não há direito a acompanhar a narrativa do princípio ao fim, não há direito à sensação de que se controla o que se vê. Tom e Francis nos campos de milho: quando ali chegamos já o primeiro fora violentado na elipse anterior.

“A violência está em todo o lado, começa no principio do filme, logo quando a personagem da mãe lhe diz: ‘não sei quem tu [Tom] és, ele [o namorado morto] nunca me falou de ti’. A violência está logo no facto de alguém ser ignorado, de uma existência ser apagada. Depois chega o irmão, há abuso físico, ‘tu não existes, não tens direito a existir aqui, para isso tens de jogar o meu jogo, vais passar por outra pessoa, vais comportar-te bem na igreja’. A violência começa logo aos sete minutos de filme. E obviamente começou antes, porque a violência de uma morte é imensa. Mas quanto à violência trazida ao filme pelas personagens e perpetrada sobre outras personagens, ela começa com Francis. Mas pensei que para Tom na Quinta ser eficaz em termos de tensão e suspense, não deveria ser demasiado gráfico em relação à violência. Não deveríamos ver ou ouvir tudo: a primeira vez [que as personagens se encontram] está escuro, não vemos o que acontece. Mais tarde, numa outra cena, antecipamos o que vai acontecer mas não vemos a acontecer. E no entanto o filme está impregnado de violência, mesmo que não existam as proezas físicas da violência: a violência que adivinhamos faz-nos pior.” Quando a con­sciên­cia chega, e o desejo se rompe, o filme abranda. Rufus Wain­wright canta Going to a town: “I’m going to a town that has already been burnt down/ I’m going to a place that has already been disgraced/ I’m gonna see some folks who have already been let down/ I’m so tired of America”. Tom regressa a Montréal, uma cidade, a cidade. “Windmills of your mind era uma canção sobre amor e perda. Termino com Rufus por ser uma canção sobre o vivermos num mundo em que as pessoas dificultam a entrega, dificultam o amor. Como estamos cansados disso, tentamos encontrar novas formas de amor e de amar. A América, naquela canção, é a fonte da dor, do ódio — o Canadá, claro, é na América. Tom foi refém naqueles campos de milho, naquela cozinha, naquela casa, pensei que regressar à cidade seria uma libertação — da América profunda ou do Canadá profundo, de todos os países profundos.”

Sabia que o suspiro final do violador, I need you, i need you, traz ecos do desejo da vítima em O Desconhecido do Lago, de Alain Guiraudie? “Não, não conheço esse filme.”

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