Crime e Castigo

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Sabíamos que, em 1977, Polanski teve sexo com uma menor, foi preso e acusado, e fugiu dos EUA para não cumprir pena. O que não sabíamos eram as circunstâncias desse processo judicial. É o que conta "Roman Polanski, Procurado e Desejado", que chega ao DVD português.

Este filme chama-se "Roman Polanski, Procurado e Desejado" por causa do depoimento de um amigo do cineasta que explica como Polanski é "procurado" nos EUA, país que o colocou em tribunal por atentados à moral, e "desejado" pela Europa que o recebeu de braços abertos como artista transgressor. Mas talvez devesse chamar-se "O Processo de Roman Polanski". Porque o que aqui está em jogo não é tanto a moralidade (ou falta da dita) do polaco, mas sim a atitude da sociedade para com a sua moralidade (ou falta da dita), e aquilo que essa atitude diz dessa sociedade.

O mesmo é dizer: quem quiser perceber se Polanski é um pervertido ou um artista transgressor não encontrará aqui resposta cabal. Quando muito, perceberá que as duas coisas não são mutuamente exclusivas, e que Polanski tem mais zonas de sombra na sua vida do que a maior parte das pessoas alguma vez sonhou ter. O que interessa à documentarista americana Marina Zenovich (que já filmou como Julian Schnabel, Robert Wilson ou David Lynch) é outra coisa: perceber que o processo de Roman Polanski não é tanto sobre ele ter tido sexo com uma menor em 1977, mas sim aquilo que o que se seguiu a esse acto nos revela sobre a justiça, sobre a opinião pública, sobre a percepção, sobre o modo como os media se apropriam de uma história. Uma história que está mal contada desde o princípio e que quase ninguém explorou a fundo.

Os factos incontornáveis: em Março de 1977, Roman Polanski realizou uma sessão fotográfica para a revista "Vogue Hommes" em casa de Jack Nicholson, Los Angeles, com Samantha Gailey, de 13 anos. Houve álcool, drogas e sexo. Apresentou-se queixa à polícia. Polanski foi preso e acusado.

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João Ferreira Oliveira é jornalista e jogador de fim-de-semana. Vive em Lisboa

A partir daqui, as coisas tornam-se mais ambíguas. Polanski forçou Samantha ou deixou-se seduzir por ela? Samantha deixou-se seduzir por Polanski ou resistiu-lhe? Samantha era uma inocente corrompida pelo Mal ou uma serpente tentadora instigada pela mãe? O cineasta já ia com a cena fisgada ou deixou-se levar por uma decisão precipitada?

Brincar com o fogo

Só as partes interessadas sabem a verdade, o que não invalida a ilegalidade judicial do acto: sim, Polanski teve sexo com uma menor. Roger Gunson, o promotor público que dirigiu a acusação, diz à câmara de Marina Zenovich que o próprio cinema de Polanski, que descobriu num festival de filmes do cineasta a decorrer em Los Angeles na altura, parecia focar-se no que estava em jogo na acusação: corrupção e inocência. Ao fazê-lo, Gunson toca numa das chaves essenciais para compreender este processo: Polanski é "o outro", o estrangeiro, o que não é como nós. O homem vindo de longe que transporta um passado trágico (perdeu a mãe em Auschwitz, e a mulher, Sharon Tate, foi assassinada pelo bando de Charles Manson), autor de filmes estranhos, obsessivos e transgressores. Mas também símbolo da possível coexistência entre a cultura "mainstream" conservadora e a renovação pop dos "swinging sixties", ícone de um possível "terceiro rumo" dionisíaco típico da "era do Aquário" à qual a morte de Tate, em Agosto de 1969, veio pôr um fim abrupto.

Zenovich utiliza excertos de entrevistas de época para sugerir que o cineasta terá sido em parte vítima da obsessão dos tablóides sensacionalistas. Afinal, ele filmara um apocalipse de vampiros para rir ("Por Favor Não me Morda o Pescoço", 1967) e uma metáfora diabólica da maternidade ("A Semente do Diabo", 1968), e perdera a esposa num sangrento crime ritual. Quando o escândalo de Samantha rebentou em 1977, a percepção de Polanski como personagem perseguida pelo Mal confirmou-se.

Mas era uma percepção unilateral: nos EUA, um depravado, na Europa um artista que fazia aquilo que os artistas são supostos fazer, transgredir. Nunca foi só uma dualidade cultural: as observações psiquiátricas confirmariam mais tarde que Polanski não sofria de nenhuma tara sexual. Tratava-se, apenas, de um homem a quem a moralidade convencional parecia não pesar, que assumia publicamente aquilo que muitos faziam à socapa.

Impõe-se aqui um aparte: dizia-se que Roger Gunson, o advogado de acusação, teria ficado com o caso por ser o único advogado do departamento que nunca tinha tido relações sexuais com menores. E, sabendo-se o que se sabe hoje da corrupção enraizada em Los Angeles na altura, não só o aparte de má língua parece relevante como aponta pistas para o verdadeiro crime de Polanski: assumir frontalmente o que outros faziam em privado, e ser usado, devido ao seu próprio estatuto de "alienígena", como "caso exemplar".

O problema é que era nos EUA que tinha sido apanhado e estava a ser julgado. E que, rapidamente, tanto a acusação como a defesa como a própria Samantha Gailey - que o diz à câmara de Marina Zenovich - compreenderam que o juiz a quem o caso foi entregue não queria saber nem dela, nem de Polanski, nem do crime que se estava a julgar.

Eu é que sou o juiz

O juiz Laurence J. Rittenband, falecido em 1988, era conhecido como "O Martelo": atribuía sentenças pesadas julgara muitos processos de estrelas de cinema apanhadas em situações menos próprias. Desde o início, o seu papel transcendeu o que deve ser a função do juiz: em vez de julgar desapaixonadamente os factos presentes ao tribunal, orquestrou uma elaborada pantomima na praça pública, aparentemente destinada a castigar Polanski mais do que a cumprir a justiça que era suposto fazer. Como se não bastasse Samantha dizer perante a câmara que Rittenband não queria saber dela, Roger Gunson e o advogado de defesa Douglas Dalton confirmam que o juiz se deixou seduzir pela atenção que o caso lhe poderia trazer, manobrando os cordelinhos para sair bem visto. A natureza e a gravidade do caso e o facto de haver uma adolescente envolvida parece ter sido descartado pelo juiz.

No documentário, David Wells (um dos elementos da equipa do promotor público) admite que teria manipulado Rittenband para não deixar o "sacaninha" - Polanski - escapar-se ao castigo que merecia. Há uma semana, em plena ressaca da detenção de Polanski na Suíça, Wells decidiu corrigir o depoimento feito a Zenovich, e confessou ao "Los Angeles Times" que mentiu quando disse ter aconselhado o juiz a castigar o realizador com uma pena de prisão - e que o fez por "pensar que o documentário nunca seria exibido nos EUA": "Preferia dizer que foi uma declaração disparatada, mas a verdade é que foi uma mentira. Sou mundialmente conhecido como mentiroso, é devastador".

"Perplexa com o ‘timing' da declaração", Marina Zenovich emitiu um comunicado lembrando que "desde Junho de 2008 o filme tem sido exibido regularmente na TV americana, via HBO, mas também em salas e em DVD", pelo que é "estranho" Wells não ter "levantado a questão mais cedo". "Ele sempre foi amigável e aberto comigo. Em nenhum momento ao longo destes quatro anos [de relaização do filme] ele manifestou quaisquer dúvidas sobre o conteúdo do seu depoimento. Aliás, num artigo que o "New York Times" publicou em Julho de 2008, corroborou o relato que fez no meu documentário

Para todos os efeitos, esta é uma historieta secundária no contexto do caso: tenha ou não sido Wells a aconselhar o juiz, o certo é que Rittenband voltou atrás com a sentença acordada. Mesmo depois de um acordo que reduziu as seis acusações originais apenas a uma admissão de culpa por relação sexual ilícita com uma menor e da avaliação psiquiátrica, obrigatória nestes casos, ter recomendado liberdade condicional para Polanski, o juiz impôs uma segunda avaliação psiquiátrica realizada num estabelecimento correccional "hardcore" (que voltou a sugerir liberdade condicional) e insistiu na prisão efectiva, alegando ser a isso forçado pelo peso da opinião pública que até certo ponto tentara manipular.

Cansado de ser um joguete, Polanski partiu em direcção à Europa em Fevereiro de 1978, deixando para trás um processo kafkiano que parece feito à medida de um dos seus filmes.

As repercussões continuam a ressoar 30 anos depois, causando sinceras divisões de opinião entre a comunidade artística e política. O documentário de Marina Zenovich, co-produzido pela BBC e que começou por ser exibido no canal de cabo HBO antes de fazer carreira em salas, terá levantado a lebre sobre um processo que estava meio adormecido, relançando a "caça ao homem" que culminou na Suíça na semana passada, e levantando uma série de dilemas morais bizarros.

Vale a pena continuar a perseguir um homem de 76 anos por algo que aconteceu há 30 anos e que nunca mais se repetiu? Ninguém deve estar acima da lei, mas não há coisas mais importantes para a lei cumprir do que um caso velho, cuja legalidade levanta sérias dúvidas e que não cumpre hoje nenhum propósito a não ser provar que a justiça é cega e tem braço longo? Ou é precisamente o facto de se terem passado 30 anos a razão para que se faça a justiça que então não se fez?

O mérito de "Roman Polanski, Procurado e Desejado" - cuja edição local em DVD, pela Valentim de Carvalho, quis o acaso que acontecesse em simultâneo com a prisão de Polanski na Suíça - é o de deixar essas respostas a cada um. As suas simpatias estão ao lado do realizador, mais pelas bizarras condições em que o processo se realizou do que pela defesa do artista transgressor.

Samantha Gailey, entretanto casada e mãe, chegou a acordo financeiro com o realizador e perdoou-lhe publicamente, em 1997. Douglas Dalton, o advogado de defesa, interpôs (e viu aprovado) recurso para afastar Laurence Rittenband do caso por preconceito contra o réu, no que foi apoiado pelo advogado de acusação, Roger Gunson. Mas o estatuto de Polanski como fugitivo à justiça nunca foi revogado, e, abordado há poucos anos pelos advogados do cineasta, o departamento do Promotor Público reagiu favoravelmente à possibilidade de encerrar o caso - desde que as sessões de tribunal fossem televisionadas. Polanski recusou (são as legendas explicativas finais do documentário). Ei-lo agora sob custódia.

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