O Herman fora da TV

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É hoje que Nasci P'ra Cantar se estreia no horário nobre da TVI. Herman José, que regressa à TV pela mão de José Eduardo Moniz, ficou "gelado" com a possibilidade da saída do director-geral da TVI para o Benfica. Durante três meses, Herman viveu nos palcos, fora da televisão.

O Herman fora da TV

Ei-lo em palco. Herman José salta, sorri, arranca com És Tão Boa e mostra-se como sempre foi: faz imitações, arrisca com alusões ao flato e cintos de castidade século XXI ("com célula fotoeléctrica") e evoca Amália de olhos semicerrados nos seus "obrigada, obrigada" arrastados. "Já estou na minha fase Amália Rodrigues e também já não me lembro de nada." Não será bem verdade. Estamos em Oliveira de Azeméis, na praça do município, à mesma hora em que decorre a festa dos Globos de Ouro. E a festa da SIC não lhe escapa.

Em palco, já tinha perguntado: "Então, não ficaste em casa a ver os Globos?" Nos bastidores, numa sala anexa às garagens da praça no final do espectáculo, recebe por telemóvel as notícias sobre os vencedores, a pensar em amigos como a fadista Mariza. Passava um mês e meio da saída da SIC de Herman José, a eterna referência do humor nacional, o apresentador que adora talk-shows, o cançonetista, o entertainer. E só daí a três semanas saberia que o regresso à televisão seria na TVI, numa aposta estival das noites de domingo baseada num formato britânico paralelo ao Chuva de Estrelas.

Já se adivinhava o namoro. Desde que saiu da estação de Carnaxide, Herman só esteve na televisão ao lado de Júlia Pinheiro ou para entrevista no TVI24. À saída da SIC, a 27 de Março, já tecera rasgados elogios ao "amigo" José Eduardo Moniz e as visitas ao canal de Queluz pareciam os primeiros passos de uma dança de corte mútua. Enquanto mordiscava uma sandes na descompressão pós-actuação, enunciava em Oliveira de Azeméis: "Na RTP há um entendimento perfeito do que é o canal, a informação funde-se com a programação pacificamente, os pivôs não são vedetas. E na TVI têm um grande líder que não aceita contraditório."

Já sobre a SIC, os lábios apertam-se. Sentiu-se empurrado por uma hidra, desta vez de duas cabeças. "Adorei fazer a Roda da Sorte [o último programa regular que fez na estação, que deu lugar a Nós Por Cá], mas acho que já tinha os anticorpos todos a funcionar lá dentro. A informação queria muito aquele espaço, é uma empresa em que se vive um 'Informação contra Programação'. A Roda da Sorte sucumbiu a essa guerra. Foi vítima de fogo amigo."

Mas o espectáculo tem de continuar. Afinal, ele é The One and Only (título original do formato adaptado pela Endemol para a TVI), o programa a que a partir de hoje dá a cara. E Herman agradece o tempo livre para se reorganizar e "reconquistar o mercado" dos espectáculos ao vivo.

Nessa noite de Maio, tinha passado em revista material novo e os ícones. Enfia o lenço e torna-se Maximiana, enfia os caracóis e surge Serafim Saudade, pega na guitarra e Saca o saca-rolhas. Não é só stand-up comedy, não é só o music-hall de Tony Silva, é um misto para um público sempre diferente e de todas as idades. Susana Cruz, de 27 anos, e Carla Costa, de 26, são fãs de Herman "desde pequeninas". Durante o espectáculo, cantavam todas as músicas sem falhar uma estrofe. Susana lembra-se de, no ciclo preparatório, ter começado a gravar os programas do humorista. "Tenho tudo gravado em cassette e sei os sketches de ponta a ponta."

Também gosta muito de galas, de ver os Globos de Ouro na SIC, mas não trocaria uma actuação ao vivo de Herman José na sua terra por uma televisão sem ele. Lá ao fundo, os cafés da praça têm as TV sintonizadas em vários canais. Uma delas permite espreitar Bárbara Guimarães a apresentar a gala. Herman não viu, mas não se poupa ao relembrar os Globos de 2008 e de como achou "exótica a entrevista da Bárbara Guimarães ao Peter O'Toole". A apresentadora atrapalhou-se com o inglês "e eu estava na primeira fila, não me custava nada, a custo zero, entrevistar fosse quem fosse. E tivemos aquele grande momento de humor involuntário..."

No fundo, sentia-se desaproveitado em Carnaxide. Em pleno pousio televisivo, Herman não teve tempos mortos. Desdobrou-se em espectáculos ao vivo, de Londres a Tabuaço, com cerca de 50 mil pessoas ou centenas a vê-lo. Gravou um disco, Vou Ali e Já Venho, título sugestivo que se baseia num blues que compôs. "Nem tinha a ver com a saída da SIC, mas se calhar foi uma mensagem subliminar que nasceu algures no meu neocórtex."

Na ausência dos ecrãs, sem contratos, sem propostas, sentiu o encanto da independência económica. "Eu não preciso das televisões para manter a minha estrutura viva. Senão não podia dar-me ao luxo de bater com a porta na SIC e dizer: 'Vou-me embora, não contem mais comigo'. Ficava ali à espera que houvesse mais qualquer coisinha... Talvez já devesse ter feito isto há mais tempo."

Susto de gelar

Fora dos ecrãs, fez um downsizing na sua vida pessoal. "Estou numa fase de me simplificar, de pôr em prática o meu próprio Simplex. Um dia acabei as férias e percebi que já não era eu que tinha férias com o barco, o barco é que tinha férias comigo. Nesse ano mudei para uma lancha e agora pareço um miúdo, passo a vida no mar e entro e saio quando me apetece." Também fechou o seu derradeiro restaurante, porque não tem vocação para empresário. "Gostava muito de nunca prescindir do Tivoli porque acho lindo, não como negócio, mas em termos simbólicos, um artista poder ser sócio de um teatro. E ainda não perdi a esperança de fazer lá um talk-show, um dia, quando Portugal voltar a ser um país rico."

Esteve com amigos - Joe Berardo, Manuel da Fonseca, Júlia Pinheiro, entre muitos outros conhecidos ou figuras que não são públicas -, foi aos santos populares, esteve com o "seu" público. Mas também apanhou um susto. Daqueles com a dimensão quase religiosa que envolve o futebol. Duas semanas depois de ter sido apresentado como contratação de Verão da TVI, José Eduardo Moniz criou um minitabu, só desfeito às 21h00 de 18 de Junho, sobre se iria ou não candidatar-se à presidência do Benfica.

"Fiquei gelado. Completamente gelado", diz Herman José ao P2, já em Lisboa. "Mas não fui só eu. Percebi, pelo tom deles [profissionais da TVI], que colectivamente entraram em pânico. Deve ter sido o maior susto colectivo dos últimos tempos porque aquele é um projecto, realmente, de uma pessoa e de uma maneira de estar e de uma sensibilidade obstinada que, se quebrar... É o mesmo que imaginar o El Bulli sem o Ferran Adrià."

Esta segunda parte da conversa decorreu em passo cadenciado pelos corredores do El Corte Inglés, com Herman de saída da apresentação do livro Os Meus 30 Anos com Amália. Escassos foram os minutos em que não era abordado por fãs, antigos conhecidos ou funcionários a pedir uma fotografia com Herman a tiracolo. É o que chama a sua "postura de campanha eleitoral". "Tenho sempre uma política que é: quando estou na rua, sou das pessoas e, portanto, sirvo-as. Se quiserem falar, falo, se quiserem beijinhos, dou. Se me sinto mal, não saio."

Regressou ontem, vindo de umas miniférias em Nova Iorque, a sua cidade de eleição, para o ensaio geral do programa de cantigas e imitações da TVI. Sem medos. Em Oliveira de Azeméis, vestido de negro, recordava com um brilho especial a sua passagem pela TVI, com Júlia Pinheiro, e o pico de audiências que há muito não tinha - 1,5 milhões de espectadores a vê-lo, em directo. Agora, em Lisboa, de bege, continua encantado com a possibilidade dos milhões. Mas "nunca conto com o ovo no cu da galinha", garante.

Em directo, todos os domingos, "vou fazer o melhor que sei e posso e vou fazer bem. Para mim, é completamente indiferente, porque já tive o meu lucro". Que "é o momento do regresso, a reacção do mercado, a maneira como as pessoas reagiram. A própria imprensa, mesmo a mais agressiva, que nunca foi hostil, quase que me apoia". Precisa de sentir-se acarinhado, diz, sobretudo pelos operadores de televisão. "Porque senão é um contra-senso. A partir dos 50 uma pessoa deixa de ter tempo para ser infeliz. Sei que me falta um terceiro acto pequenino e não tenho tempo para ser infeliz."

Agradece a generosidade de Moniz. "O que o José Eduardo Moniz faz com o convite [para apresentar o novo programa] é muito mais do que contratar um apresentador." Fê-lo sentir menos a "cómoda indo-chinesa" num cenário "género Philippe Starck, mas que nunca o é", como descreve os últimos anos na SIC, e mais "um avançado-centro".

Herman José fala assim muitas vezes, por comparações e metáforas, mas sempre de forma certeira. Delicado, mas com a capacidade de chispar apenas com os olhos ou com um sorriso malandro. Perguntamos-lhe qual o papel que lhe resta num humor português conjugado no presente, depois de muitos anos em que é visto mais como apresentador do que como humorista, em que saiu do estado de graça, em que está mais exposto às críticas e crises. "O meu desafio era não adormecer à sombra da bananeira. Duvido que me apeteça voltar a pôr bigodes e a fazer bonecos." Mas o seu lado observador não lhe obedece. "Noutro dia, numa festa, estava a ver uma bêbeda gloriosa, que dizia tudo como os malucos, que passava por um ministro e dizia: 'Estás mais gordo, pá'." Irresistível. "Não está fora de questão voltar às personagens", repensa.

Flashback de Oliveira de Azeméis: quando há palavrões no palco, na assistência há risos, pré-adolescentes boquiabertos e um casal de meia-idade que resmunga "isto não tem piada". Mas que não arreda pé. Sai uma piada à Madre Teresa de Calcutá e, nas filas da frente, cochicha-se "Ai, Jesus".

Fast-forward para hoje. A televisão não está já em função de pausa. Mas, para já, é só durante o Verão. Entretanto, Herman José vai continuar a dar espectáculos - em Agosto junta-se a José Cid no Algarve, em Setembro volta ao Tivoli com orquestra a acompanhar -, que descreve como "orgânicos". São, no fundo, uma súmula do artista que desde a década de 1970 entretém um país, com altos e baixos. "Imagine-se no Coliseu e que cada frisa é um pacote de ideias. Como as jukeboxes, que vão buscar um disco e que o põem a tocar, eu funciono assim. Consoante o que vou sentindo do público, vou à procura e ponho."

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