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Paul Newman: alguém lá em cima devia ter gostado mais dele

Muitos sabem de que cor eram os olhos de Paul Newman, poucos sabem o que eles viram. O Estoril Film Festival programou uma homenagem a um singularíssimo cineasta, um muito discreto cineasta, um grande cineasta.

Vasco Câmara

5 de Dezembro de 2008, 0:00 actualizado a 22 de Março de 2013, 0:00

Os olhos azuis de Paul Newman vieram primeiro que tudo nas notícias que, não tão subitamente assim, em Setembro passado, fizeram a necrologia.

Mas custou ver a filantropia e os molhos para salada, com a marca "Newman's Own", serem colocados à frente do que esses olhos viram – e a forma como eles viram – entre 1968 e 1987.

Rachel, Rachel (1968)

Globos de Ouro para Joanne Woodward, actriz, e Paul Newman, realizador; nomeações aos Óscares para a actriz principal (Woodward) e secundária (Estelle Parsons) e para o filme – mas não para o realizador; capa da "Life" para o casal, enfim, um triunfo como não voltaria a acontecer na carreira do realizador. Para estarmos à altura deste retrato de uma solitária professora que é embalado por um tempo de presente e passado, de infância e vida descendente, socorremo-nos de um testemunho do argumentista Stewart Stern, que observou Newman a dirigir Woodward: "Foi o mais explícito rosto de amor para o qual alguma vez olhei. Não se podia olhar demoradamente para ele. Era como abrir a porta errada."

Foi entre esses anos que, com "Rachel, Rachel", "Sometimes a Great Notion", "A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas", "The Shadow Box", "Harry and Son – O Confronto" e "The Glass Menagerie – Algemas de Cristal", uma das maiores estrelas do cinema americano foi também cineasta, um singularíssimo cineasta, um muito discreto cineasta. Pouca gente sabe.

A ausência deste pedaço da sua vida na generalidade dos comentários, biografias e perfis traçados nos dias a seguir à morte acaba por ser, é verdade, o corolário do esquecimento a que o realizador Newman foi votado no seu tempo – quanto muito, e apesar dos prémios que alguns deles receberam, esses filmes foram olhados com deferência, aquilo que não disfarça a incapacidade de sentir paixão.

Foi breve – seis filmes –, ficou algo por cumprir, nunca saberemos da frustração do realizador, que nas suas entrevistas foi tão discreto quanto os seus filmes.

É por isso que a homenagem que lhe presta o Estoril Film Festival, que decorre de 14 a 22 [ver páginas do suplemento P2], é a oportunidade de fazer justiça histórica: (re)descobre-se um universo lírico, frágil, com uma disponibilidade imensa e intensa para as personagens que é de pôr ao lado dos grandes do cinema americano.

Para entrar a matar, diga-se que uma das excepções ao esquecimento da obra de Newman-cineasta foi um texto do crítico espanhol Miguel Marías (www.movingimagesource.us).

Chamou-lhe "The Intimate Gaze", e ali defende (não demonstra; declara os seus sentimentos) que Newman como realizador é uma "espécie de elo inconsciente perdido" entre a geração "ferida" do classicismo americano, gente como Nicholas Ray, Kazan, Richard Brooks, Mankiewicz, Preminger, Minnelli ou Robert Rossen, e as experiências mais modernas e abstractas de quem veio depois, como Cassavetes, Abel Ferrara ou Charles Burnett.

A referência a Brooks, para quem Newman interpretou os seus papéis mais icónicos dos anos 1950/1960, "Gata em Telhado de Zinco Quente" e "Corações na Penumbra", é bem lembrada; é aí, numa espécie de toque, gesto impressionista, que o cinema de Paul Newman se filia.

A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas (1972)

Com o prémio de interpretação em Cannes para Woodward, um marido apaixonado fazia os talentos da sua mulher, para ele supremos, serem compensados. Mas ao dar-lhe esse papel de uma mãe a quem a vida transformou "na megera mais maltrapilha da cidade" (palavras da actriz), Newman pôs em perigo a vida familiar – que, segundo as biografias, nunca foi modelo de estabilidade. Joanne Woodward: "Durante a rodagem eu estava tão deprimida e mesmo suicida que não me suportava. Detestava a minha aparência, odiava a personagem e aquilo que ela fazia aos filhos. Toquei a loucura. O papel perturbou-me durante a rodagem e mesmo depois. Há em Beatrice [a personagem] algo de abominável que se incrustrou em mim. Uma podridão interior. Compreendi-a demasiado bem. Quando somos rejeitados e quando nos rejeitamos a nós próprios, a fealdade destrói tudo o que pode existir de belo em nós."

The Shadow Box (1980)

Produzido para a TV, por uma das filhas do realizador, Susan Newman, este (tele)filme é uma descoberta. Newman aventurava-se, com a peça de Michael Cristofer, pelos terrenos, movediços, em termos de ficção audiovisual, da doença terminal – personagens com cancro passam os seus últimos dias com os familiares numa clínica (Christopher Plummer, Melinda Dillon, Joanne Woodward e Silvia Sydney estão entre os intérpretes). A serenidade do olhar torna "The Shadow Box" experimental, uma alternativa aos maneirismos sentimentais do docudrama. Hoje, depois da forma como Newman geriu a sua própria antecâmara de morte, esse pioneirismo pode ser emocionalmente refundado.

Sometimes a Great Notion (1971)

O realizador do filme, Richard Colla, incompatibilizou-se com Henry Fonda, uma das vedetas, e Newman, outro dos actores, assumiu a realização do filme que adaptava um romance de Ken Kesey. Era a única forma de salvar o projecto. O "toque de Newman" é visível: no retrato íntimo de uma família de madeireiros, individualistas, algo reaccionários; no silêncio das mulheres, na ferocidade, que é trágica, dos homens. Mas também se vê que o cineasta apanhou um comboio em andamento e que a dimensão telúrica não era molde que ele habitasse à vontade.

O Confronto (1984)

O realizador não se furtou às perguntas que quiseram relacionar o filme – em que um pai (Paul Newman) e um filho (Robby Benson) se tentam adequar um ao outro – com as suas próprias dificuldades com um filho problemático, Scott Newman, vítima de "overdose" em 1978. "Há neste filme coisas em relação às quais me posso identificar enquanto pai", disse este pai de seis filhos. Sobre Scott, especificamente, acrescentou: "Não se pode pôr a dor em ficção." Quem morre em "Harry and Son", na verdade, é o pai. Esta troca diz o que é necessário saber sobre o pudor e a delicadeza de um realizador. A cena da morte foi filmada, a pedido do seu marido, por Joanne Woodward.

Algemas de Cristal (1987)

Foi o encontro com uma memória subterrânea do cinema de Newman/realizador e icónica do cinema do Newman/actor: Tennessee Williams ("Gata em Telhado de Zinco Quente", "Corações na Penumbra"). É um teatro de sombras feito com o prenúncio de fim que está na obra do dramaturgo, toda aquela fragilidade cercada num mundo carnívoro, e a disponibilidade musical que está na obra do realizador. Newman não foi receber o Óscar pela sua interpretação em "A Cor do Dinheiro" porque montava "Algemas de Cristal" (e não queria passar pela crueldade de mais uma cerimónia da Academia em que saía de mãos vazias). Mas deslocou-se a Cannes para promover o filme, que, segundo ele, tinha no "cast" a maior actriz americana, Joanne Woodward. Mas uma das maiores adaptações de sempre de Williams – hoje isso é evidente – foi recebida sem paixão. É um filme transbordante, à beira das lágrimas – até porque o realizador disse à sua actriz, a intérprete de Amanda, essa mãe que esbraceja contra a voragem do tempo, que nem pensasse em chorar; ele cortaria a cena.

Uma questão íntima

É, todo ele, o cinema de Newman, uma questão íntima. Por isso "The Intimate Gaze" é um título bonito e apropriado.

Antes do mais: começou a realizar para tentar sossegar uma insatisfação.

Tinha 42 anos em 1968, estava a atingir o zénite da sua fama de actor (tinha filmado "Cool Hand Luke", dois anos depois chegaria o sucesso apoteótico de "Dois Homens e um Destino"), e sentia que quanto mais fazia, mais se repetia.

"Cada vez que me vejo no ecrã hoje penso: 'Ali está Hud [de 'Hud, o Mais Selvagem entre Mil'], e ali está um pouco de Harper [de 'Harper']. Não sou inesgotável como um Laurence Olivier. Não possuo esse género de talento."

O crítico David Thompson encontrou, aliás, na carreira de Newman-actor uma "arrogância" inicial que, com o tempo, se transformou em "perplexidade", como se dessa forma ele quisesse assustar os que se prostravam em adoração à sua beleza e ao seu talento tomando-os a sério – afinal, este foi o homem que comprou espaço publicitário na revista "Variety" para pedir desculpa todos os dias aos espectadores que vissem naquela semana televisiva "The Silver Chalice", o seu primeiro filme como actor, que ele considerava péssimo.

Isto para dizer que "Rachel, Rachel", a estreia na realização, nasceu dessa necessidade de trabalhar uma outra imagem de si próprio – para si próprio. Stewart Stern, o argumentista que o acompanhou nesse filme, disse: "Paul é daqueles que pensa qualquer tarefa como um duelo ao meio dia sob um sol escaldante.

Realizar filmes era uma tarefa desse calibre. Não haveria sombra sob a qual se proteger." E disse o próprio Newman: "Sempre quis ser realizador porque sempre gostei daquilo que ultrapassa a simples interpretação: os ensaios, as pesquisas no terreno, a exploração de uma personagem, todo o lado intelectual da coisa. Gosto mais disso do que subir a um palco ou mostrar-me frente à câmara.

Que para mim sempre foi mais penoso do que agradável. Suponho que não sou muito exibicionista."

A outra razão íntima chamou-se Joanne Woodward, com quem Newman se casou em 1958. "Joanne abandonou completamente a sua carreira por mim, para ficar do meu lado, para que o nosso casamento funcionasse. Se ela fizesse teatro todas as noites [em Nova Iorque] enquanto eu estivesse na Costa Oeste [a filmar] não haveria casamento. Penso que isso me incomoda mais do que a ela, mas também a perturba. Às vezes, entro em casa e vejo esta mulher a deambular pelas salas a murmurar: 'O que é que faço para dar de comer a sete pessoas [Newman teve seis filhos, três da primeira mulher, Jackie Witte, três de Joanne Woodward], o que é que cozinho?'"

Para dar a este "primeiro violino" da interpretação a possibilidade de ser "chefe de orquestra" – olhava para a mulher assim: era a maior actriz americana -, fez "Rachel, Rachel", filme, amoroso, que mergulha no mundo interior, desejos e frustrações de uma professora de província. Lutou contra o Sindicato dos Realizadores para não pôr no genérico inicial "Realizado por Paul Newman" – não queria informação inútil a distrair a atenção do espectador em relação ao essencial: "Joanne Woodward em...".

E o filme acabado, nenhum dos dois, Paul e Joanne, tinha vontade de o exibir em público.
Joanne: "Odiámos mostrá-lo. Foi como cortar um cordão umbilical. Num momento pensámos mesmo em mandar tirar uma cópia de 16mm que só podia ser vista em nossa casa."

Para Joanne fez os outros filmes, só num deles, "Sometimes a Great Notion", é que ela não entrou (Stewart Stern: "Ele procura constantemente um décor onde o mundo pode descobrir nela aquilo que ele viu"). Mas o que recorta a individualidade do seu olhar é que nenhum dos filmes é "veículo", em nenhum deles a atenção sobre Woodward eclipsa, antes pelo contrário, a disponibilidade para criar um receptáculo, um microcosmos afectuoso que integra as personagens e as suas monstruosidades.

Como diz a miúda do cósmico "A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas" (1972), que prepara para a escola um projecto de experiência com a mutação de flores, "Não, mãe, eu não odeio o mundo" – essa miúda é interpretada por Nell Potts, filha do casal Newman/Woodward, o que autoriza a encontrar nessa cena, nessa personagem, nesse filme o programa de um cineasta, a mundivisão de um artista.

Que – para pegar no título de um dos seus filmes iniciais que o revelou como uma espécie de herdeiro de James Dean, "Somebody Up There Likes Me" (1954) – merecia que alguém lá em cima tivesse gostado mais dele.

As citações deste texto são tiradas da biografia Paul e Joanne, de Joe Morella e Edward Z. Epstein

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