Nuno Bragança ainda está na clandestinidade

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Um documentário traça a sua biografia.

Aristocrata, apaixonado do boxe, revolucionário, violento e afectuoso, cristão empenhado e consciente da luta de classes, homem fascinado pelo "bas fond", homem apanhado pela vida, pelo álcool.

É uma possível definição de Nuno Bragança, romancista de primeira ou então, dizem os detractores, apenas um experimentador da língua. É este o homem que surge nos seus romances e é este o homem que surge, nas suas sofridas contradições, em "U Omãi Qe Dava Pulus" (título que será imediatamente reconhecível pelos conhecedores de Bragança), documentário de João Pinto Nogueira sobre a vida do escritor.

O filme é editado pela Midas num pacote de quatro DVDs correspondentes a quatro documentários (no sentido mais lato do termo) sobre escritores: o universo de Carlos de Oliveira em "Sob o Lado Esquerdo", de Margarida Gil, Fernando Lopes celebra Alexandre O'Neill em "Tomai Lá do O'Neill", e ainda há o retrato que o realizador Manuel Mozos e Clara Ferreira Alves fizeram de José Cardoso Pires em "Diário de Bordo", de 1998. Há depoentes que aparecem em mais que um documentário, porque todos estes escritores se cruzaram - não se fazendo um retrato de geração (os filmes não têm essa vertente), ela surge em fundo.

Dos quatro, Bragança (que morreu em 1985 com escassos 56 anos) foi o que ficou mais esquecido - a reedição da sua obra completa, feita em 1995, não chegou a vender cinco mil exemplares. Manuel Luís Bragança, filho mais velho do escritor, acha que "há um fascínio exagerado pela personagem - e menos do que o merecido pela obra".

A segunda afirmação será correcta consoante o amor que cada leitor tenha pelos seus três principais livros: "A Noite e o Riso" (1969), "Directa" (1977) e "Square Tolstoi" (1981), que traçam um olhar violento (mas repleto de amor pelas pessoas, pela vida) dos anos 60 e 70, da noite, da procura da liberdade. À bibliografia de Bragança devem acrescentar-se o livro de contos "Estação" (1984) e a novela póstuma "Do Fim do Mundo" (1990), que muitos consideram um objecto inacabado.

A primeira afirmação só pode ser compreendida se tivermos em conta que é dita em favor da obra, porque os dados que vêm a lume em "U Omãi Qe Dava Pulus" não só confirmam o que surge nos romances, como enquadram e trazem novos elementos à tona. E essa vida e a "personagem" que aí surge são, de facto, fascinantes.

Protegido

Há muitos anos João Pinto Nogueira começou a fazer a adaptação a cinema de um conto de Nuno Bragança, "O Imitador", mas nunca conseguiu subsídio. Sabendo da carga auto-biográfica da obra, chegou à conclusão que a vida do escritor podia dar uma boa história. "Isso foi pelo menos há dez anos", conta. Ganhou o concurso da escrita de documentários e durante uma década fez "muita investigação, muitas entrevistas", voltando "várias vezes" para colocar novas perguntas "às mesmas pessoas".

O realizador dirigiu-se à família para reconstituir o início de vida de Nuno Bragança, que é de laminar importância - essa infância era contada ("com humor", realça o crítico literário Manuel Gusmão) no primeiro painel de "A Noite e o Riso", livro constituído em três partes (painéis), mas aqui é exposta sem os labores da escrita.

No filme surge um primo, Segismundo Caupers, que relata a excessiva protecção com que a mãe de Bragança o tratava. "Ele teve uma educação muito protegida até aos 14 anos. Não saía de casa excepto para ir à catequese", resume Nogueira. Se o fim desse isolamento foi um choque ou um esplendor não é sabido, mas quando Bragança vai para o liceu "faz uma vida de boémia, de pancadaria". Segundo o realizador Fernando Lopes, amigo próximo de Nuno Bragança, este "era um tipo que por vezes podia ser um pouco violento".

Se olharmos agora para o que foi a vida do escritor, podemos ser tentados a achar que ele andou a ajustar contas com esse passado de recato. Bragança, sendo um aristocrata, envolveu-se com uma espécie de submundo da noite (retratado em "A Noite e o Riso"). Mais tarde, e apesar de cristão, envolveu-se com as Brigadas Revolucionárias ("Square Tolstoi"), fez sair gente do país ("Directa") e assistiu à morte da primeira mulher às mãos do álcool e dos comprimidos (cujo processo de dependência está em "Directa"). Tudo isto está no filme.

Manuel Luís, o mais velho dos cinco filhos, diz ao Ípsilon que o que movia o pai era "um sentimento de culpa grande, por ter nascido num meio em que tinha acesso a tudo e ver à sua volta pessoas que não tinham essas facilidades. Isso talvez tenha sido decisivo para o envolvimento nas Brigadas - e foi uma opção séria, não foi querer viver uma adolescência de aventura que não tinha tido antes".

Há quem não concorde com esta visão. Segundo João Pinto Nogueira, Carlos Antunes, membro das Brigadas Revolucionárias com quem Bragança colaborou de perto, "diz que a necessidade dele de agir é para ter material para escrever". Mas repare-se: "em 1968 Bragança foi para Paris, para a OCDE, depois de ter trabalhado no que é hoje em dia o Ministério do Trabalho". São cargos de destaque, que obrigam a um cuidado bastante grande na exposição. Vários amigos do escritor dizem que é difícil de defender que um homem corra tantos riscos apenas para poder experienciar a vida e depois reportá-la.

Segundo o realizador, Bragança vai para Paris "para poder escrever". É nessa altura que acaba "A Noite e o Riso", que, diz Manuel Gusmão, "foi o [livro dele] que provocou maior entusiasmo quando saiu".

Apesar da escrita ornamentada e imaginativa, para Gusmão, "o que chamou à atenção foi o humor, característica do primeiro painel". Mas logo o segundo painel era "extremamente sóbrio e distante, nós só sabemos como ele se sente através dos gestos dele". O terceiro era um conjunto de "micro-contos morais com uma espécie de experiência de vida". Esta é uma questão importante, porque a estranha estrutura do livro é alvo de apreciações contraditórias, havendo quem aponte que ficou preso a tiques de época. Gusmão não concorda: "Como é que se vai dizer que ali há modismos? Dizer que isto tem tiques de vanguarda... renova-se na forma, mas não são brincadeiras pós-Joyceanas".

Nessa altura Bragança tem um problema grave com a mulher, que se torna dependente do álcool e dos comprimidos, como é mostrado no filme, e a viagem para Paris já é feita sem ela, mas na companhia de Maria Belo, sua nova namorada (que depõe no documentário). Os filhos também ficam em Portugal.

Bragança há muito que fazia o seu trabalho de resistência, ajudando gente a sair do país, como é retratado em "Directa". No documentário, o ex-deputado do PS Eurico Figueiredo assume ser o homem visado no livro.

Mas em Paris o seu envolvimento torna-se gradualmente maior. É durante esses anos que ele traz para Portugal - tal como o filme mostra - os primeiros explosivos, para, segundo Fernando Lopes (o Ramiro de "Square Tolstoi", diz o próprio) dar cabo dos helicópteros de Santa Margarida. O contacto de Bragança era Carlos Antunes, que lhe fora apresentado por Manuel Alegre, tratado em "Square Tolstoi" por "o outro".

Secretismo

Nesse período Bragança faz "Nacionalidade: Português", documentário sobre os emigrantes portugueses hoje desaparecido. Lopes conta que Bragança "conseguiu arranjar dinheiro ao Manuel Bulhosa dizendo que iam fazer um filme sobre os emigrantes que punham dinheiro no banco". Mas para o realizador o filme "serviu-lhe os propósitos revolucionários", permitiu a liberdade necessária para as suas movimentações.

Este é outro aspecto determinante na vida de Bragança: a clandestinidade obrigava-o a um secretismo esmagador.

Manuel Luís: "Ele compartimentava tudo. Foi uma das razões para o casamento com a minha mãe não se ter aguentado. O pacto de não-segredos entre eles, referido na ''Directa'', já tinha sido quebrado por ele por causa da vida clandestina a que ele a quis poupar."

Essa compartimentação era, diz o filho, necessária. Manuel Luís conta um episódio ilustrativo: "Um dia houve uns petardos na Avenida de Berna - nós vivíamos na casa da Teresa Ricou, na Rua de São Marçal. A PIDE foi lá a casa porque um dos carros que estava parado na Avenida de Berna era da Teresa.. O meu pai apanhou um cagaço, porque estava com material complicado. Nessa noite ajudei-o a transportar duas malas cheias de papelada para levar para casa dos meus avós. Mas a papelada nunca foi para casa da minha avó. Ele tinha mentido ao dizer-me que ia pô-la lá - porque se a PIDE me perguntasse alguma coisa, eu dava a pista errada."

João Pinto Nogueira remata dizendo que "ele era uma pessoa diferente para cada um dos amigos" e Fernando Lopes assinala que "ele separava os mundos, havia imensa gente na vida dele que eu não conhecia".

Enquanto pai, Bragança tinha sido, até se deslocar para Paris, "muito reservado nos afectos mas ainda assim afectuoso". A escrita fazia de facto parte de uma rotina obsessiva: "Com cinco, seis anos já percebia que o meu pai escrevia. Era muito agarrado à escrita."

Bragança levantava-se às cinco da manhã, todos os dias, para escrever. Manteve até ao fim da vida um conjunto de diários, que, segundo o filho, tanto funcionava como "uma base de dados", como "era uma forma de lidar" com o "medo que ele tinha das emoções". Era "uma pessoa distante, tinha sempre uma postura de quem estava por cima das conversas, não gesticulava muito, tinha dificuldade em transmitir o que sentia".

Tudo isso piorou no pós 25 de Abril. Para Fernando Lopes, "com a chegada do 25 de Abril esta geração desagregou-se. Cada um foi para seu lado". Manuel Luís diz que o pai "se viu sem lugar ideológico, porque não queria poder, o poder não era para ele. A tendência revolucionária tinhase intensificado. Interessava-lhe mais a acção romântica e revolucionária". Foi nessa altura que lhe notou "maior sofrimento". Tudo começou "com uma depressão grande", Bragança "bebia mais que a conta - e sobretudo bebia sozinho".

"Directa" saiu em 1977, "Square Tolstoi" em 1981. Entretanto tinha havido um segundo casamento, com Madalena Pestana (do qual resultaram dois filhos), igualmente tumultuoso, com o afundar no álcool e nos comprimidos. Nuno Bragança morre em 1985 e desde então a obra completa foi reeditada uma vez, em 1995, sem alaridos.

Resumo da figura, feito pelo filho: "Havia [nele] muita contradição. Uma contradição entre o que ele achava que devia ser o modo de vida das pessoas e o seu próprio ''modus vivendi'' - a começar pela história dos segredos. Tudo o resto foi uma consequência disso."

Razões para o esquecimento da obra? Fernando Lopes diz que nela "há um sub-texto [verídico] e a exposição deste pode ser impúdica". Para Manuel Luís não é disso que se trata, "talvez apenas a sua obra ainda não tenha tido o público certo".

Poderão os livros estar datados? Manuel Gusmão: "Qualquer livro tem uma marca do tempo em que foi vivido, mas neste caso cada romance é completamente diferente em termos estruturais e narrativos dos restantes", pelo que essa hipótese deve ser afastada.

Gusmão resume assim: "É um dos grandes narradores da segunda metade do século na Europa."

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