"O meu dia acabará por chegar"

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Ao longo da entrevista, Beck Hansen, 43 anos, fala lentamente, deixando respirar o silêncio enquanto procura forma de avançar no discurso. O passado ficou lá atrás mas gosta de mergulhar nele

Nos anos 1990, em que mudava de pele de disco para disco, Beck sentia-se “uma aberração”. Hoje está mais confortável. Mas não totalmente. “Tenho a sensação que não pertenço a nenhuma época”, diz

Entre Modern Guilt e Morning Phase, o novo disco, passaram seis anos. Beck não desapareceu nesse período. Gravou versões de discos históricos com Thurston Moore ou os MGMT (chamou às sessões Record Club), lançou alguns singles online e um álbum em pauta (Song Reader) e foi produtor de Charlotte Gainsbourg ou de Stephen Malkmus. Era como se estivesse a tentar libertar-se da rotina convencional de um músico com contrato discográfico.

Morning Phase, ainda assim, não foi uma surpresa – sabíamos há meses que preparava o sucessor de Modern Guilt. Mas esse disco, magnífica colecção de folk-rock densamente orquestrado (California music, como o apelidou, pensando em Neil Young, Gram Parsons ou Crosby, Stills & Nash), não é, afinal, o que primeiro imaginámos.

O rastilho para o nascimento do novo álbum deu-se quando se reuniu para concertos com o grupo de músicos que gravara Sea Change (2002). Já não tocavam juntos desde a digressão desse disco e, no momento do reencontro, algo aconteceu. O álbum que preparava, que vinha sendo referido na imprensa como um regresso às mecânicas de Odelay, um dos discos de referência da década de 1990, foi posto de lado. O regresso de Beck aos álbuns seria algo totalmente diferente. Digamos que se trocou o pretenso regresso a Odelay pelo regresso a Sea Change.

Ao longo de meia hora de entrevista, Beck Hansen, 43 anos, pesa as palavras com cuidado. Fala lentamente, deixando respirar o silêncio enquanto procura forma de avançar no discurso. O passado ficou lá atrás mas, curiosamente, gosta de mergulhar nele, de reflectir sobre ele para tentar perceber onde chegámos. Isso será o fim da entrevista. Antes, o rastilho para Morning Phase, o reencontro com os músicos de Sea Change. “Andámos a dar concertos juntos durante cerca de um ano e meio”, explica. “Depois, há cerca de um ano, juntámo-nos novamente. Algumas destas novas canções são mais antigas e foram trabalhadas com outras pessoas, mas até essa altura não funcionavam, não pareciam correctas”. Nas mãos daquela banda, as canções que que “não pareciam correctas” tornaram-se as ideais para editar neste preciso momento. A conversa começou por aí.



Este não era o disco que pensava editar nesta altura. Preparava um outro, totalmente diferente, que acabou por pôr de lado. O que havia nas canções que ouvimos em Morning Phase que o levou a mudar de rumo? Porque eram elas as “correctas” para si nesta altura?

Depois de um certo número de discos, percebemos que editar música é como iniciar uma conversa com alguém. Faço música todos os dias, mas lançar um álbum é completamente diferente, implica fazer revelações sobre o que queremos dizer. Por vezes, apercebemo-nos que afinal a conversa que iríamos iniciar não é a que desejávamos ou aquela que as pessoas quererão ter connosco. Se fizesse [o álbum que preparava] seria simplesmente arte pela arte. Não quis editá-lo agora, ainda que seja provável que o faça noutra altura. A música que fui lançando nos últimos tempos nasce mais da cabeça que do coração e, desta vez, quis criar música que viesse de um espaço mais íntimo.

Muitas das canções do álbum foram compostas ao longo dos anos. Não foram pensadas especificamente para Morning Phase. Ainda assim, sentimos o disco como uma unidade, como se tivesse nascido de um surto de inspiração limitado no tempo. 

Acho que há nele um sentimento que ergue. Estou sempre a gravar canções e a trabalhar em canções e sempre que tenho uma ideia, sempre que sou assaltado por um sentimento ou que me surge uma personagem, começo a tentar retirar dali uma canção. Não há um destino correcto, ideal, para as canções. Ao longo dos anos, podem vir dos sítios mais diversos e, por isso, quando descubro o que quero [num álbum], o meu trabalho passa por procurar em diferentes arquivos, de tempos diferentes, e juntar canções que formem uma ideia completamente definida. Procuro o que deverá ser a minha evolução musical, procuro a melhor forma de absorver o que sou naquele momento. Claro que muito disso é ditado pela intuição. Não há nenhuma fórmula correcta ou metodologia para nos ajudar nisso. Nunca sabemos que roupa iremos usar no dia de amanhã.

Ao longo dos anos foi gravando música muito diferente, da folk e hip hop caleidoscópico de Odelay ao funk plástico de Midnite Vultures, do lo-fi deOne Foot In The Grave à opulência orquestral de Sea Change. O que une toda essa música? O que se mantém inalterável na sua voz criativa?

Espero que sobressaia um ponto de vista. Tem-se o hábito de estabelecer uma relação entre a vida pessoal do músico e a música que edita num determinado momento. Isso é para mim irrelevante. Não me interessa o que os músicos fazem na sua vida privada, interessa-me o pensamento por trás da música.

Nos anos 1990, ao eliminar barreiras estéticas, ao fundir géneros que existiam de forma estanque, acabou por antecipar aquilo que a música viria a ser na década seguinte. Nesse sentido, acabou por ser uma figura determinante na evolução da música popular urbana do nosso tempo. Vê-se nessa posição? Reconhece essa importância, esse peso, na música que gravou?

Nos anos 1990, quando estava a editar os meus primeiros álbuns, sentia-me um outsider. Ou melhor, eu não me sentia uma outsider, mas sentia que era assim que olhavam para mim. Não me encaixava em lado nenhum. Olhando para o cenário actual, acho que me encaixo melhor. Alguns artistas dos anos 1960, ao olhar para o seu passado, sentem que ajudaram a definir um tempo e que são emblemáticos desse tempo. Eu era como que uma aberração, não fazia sentido na cena [musical] da altura e não tinha o sucesso de muitas das bandas americanas daquele período. Acho que nem a minha editora percebia por que é que as pessoas compravam a minha música. Tenho a sensação que não pertenço verdadeiramente a nenhuma época e que andado a fazer discos à margem de tudo aquilo que está a acontecer. Talvez no meu subconsciente tenha estado sempre um pensamento: “o meu dia acabará por chegar”. O que não invalida que me sinta muito feliz com o que tenho e com o que tive a oportunidade de fazer.

Há a tendência para ver em Beck Hansen alguém cristalizado na juventude, quer pela exuberância da música quer por, acompanhando as suas fotos ao longo do tempo, ficarmos com a impressão que os anos não passam por si. Morning Phase, porém, parece ser o disco de quem já viveu o suficiente para perceber que a vida não se divide entre o preto e o branco, entre luz e escuridão. 

Se alguma coisa aprendemos com o passar dos anos, se alguma sabedoria musical ganhamos, é o saber mapear o nosso conhecimento e, depois, permitir que a simplicidade se imponha, o que, por vezes, é muito difícil de conseguir. Bandas como os Beatles ou um músico como Bob Dylan começaram muito jovens e logo com uma música muito simples, surpreendente e directa. No meu caso, demorou tempo até o conseguir. Os sentimentos e a perspectiva do disco [Morning Phase] não têm nada com que um adolescente não possa sentir empatia, mas eu não conseguiria fazer esta música quando era mais novo, não conseguiria dizer as coisas de uma forma muito simples e mais pessoal. Foram precisos muitos anos até perceber que o podia fazer e, depois, outros tantos para perceber como o conseguir fazer.

Quando editou o seu primeiro álbum, vivíamos num mundo completamente diferente, um mundo pré-internet. O sucesso de um músico era medido em grande parte pelos discos que vendia e a discussão constante, frenética e em tempo real, era ainda uma realidade distante. Atravessou todas essas mudanças que transformaram a forma como se ouve música, como se cria a música e como esta evolui. Como olha para o futuro?

Penso que antes da internet e desta partilha constante de informação, havia entre os músicos uma maior ingenuidade e inocência. Não que os músicos fossem inocentes ou ingénuos, mas a relação que tinham com a sua música era completamente diferente. A maior parte das vezes, não fazíamos a mínima ideia do que o público pensava e isso permitia-nos ser abençoadamente ignorantes, enquanto que agora há uma troca tão tempestuosa de opiniões que os media podem tornar-se muito intimidantes. Claro que quando se estão a dar os primeiros passos não se pensa nisso. Nessa altura, és como uma criança a brincar no parque. E nenhuma criança racionaliza a forma como está a brincar. Agora, se de repente estiverem cem pessoas à volta dela, a dizer à criança que não está a brincar correctamente, que brincou muito melhor ontem ou que não brinca tão bem quanto o outro miúdo ali ao lado, é provável que a criança se torne muito neurótica e incapaz de brincar. Utilizo este exemplo porque fazer música exige esse tipo de inocência e ingenuidade. Ao fazer música estamos a arriscar a humilhação total e, portanto, temos que ignorar muitas coisas à nossa volta para nos conseguirmos pôr em canção e retirar algo dela. Ouço hoje muita música que é incrivelmente bem-feita e inteligente. Uma demonstração de gosto perfeita com óptimas ideias, melodias incríveis e letras que não têm nada de errado, mas onde não sinto muito coração ou liberdade. Outras eras tinham outras limitações, mas parecia haver maior liberdade e naturalidade na criatividade. Sinto que há melhor música a ser feita agora, mas que há menos música com esse espírito puro.

Sente-se, portanto, pessimista.

Não. Acho que estamos a dar a volta e a tentar voltar a esse estado de liberdade pessoal que um músico pode ter numa canção. Temos que nos permitir sermos simples e parvos, menos espertalhões. Claro que antes as escolhas eram muito limitadas. Hoje podemos encontrar em semanas todos os grandes músicos de toda a história. Podemos conhecer todos os álbuns de kraut-rock, todos os tipos de rock psicadélico, todos os artistas soul obscuros, todos os músicos da electrónica underground dos anos 1980. Qualquer pessoa pode ligar-se a qualquer tipo de música, em qualquer sítio, em qualquer altura. Já não há iniciação, já não existe o processo de descobrir a loja de discos local, onde te dirão para investigar esta banda ou este disco que é importante. Isso mudou completamente. Refinámos o gosto, mas temos que deixá-lo misturar-se com as nossas fraquezas e com os nossos falhanços. Precisamos de voltar a abraçar tudo isso que faz de nós humanos. Na pop, só temos assistido à criação destas verdadeiras máquinas: pessoas que estão a compor a canção pop perfeita, onde tudo está absolutamente certo, com a produção mais do momento que se pode imaginar. No universo indie vemos nascer as bandas mais cool com as influências mais cool, em que tudo é a melhor versão do melhor que já existiu. Mas chega um momento em que isso se torna saturante e em que se torna necessário cortar com tanta premeditação. É isso que está a acontecer agora. Sente-se a tensão. Estamos a começar a dar a volta. 

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