A teatralidade de grandes canções

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Angel Olsen não é necessariamente a personagem de todas as suas canções: para ela, “é até libertador o facto de [os ouvintes] terem de adivinhar” quem está por trás daquelas letras Zia Anger

Nada há de remotamente vulgar em Angel Olsen, o resultado sonhado do acasalamento entre Johnny Cash e Leonard Cohen. Aos 27 anos, ao segundo álbum, anda a namoriscar os deuses da canção folk e country. É evidente: vai pedir guarida por uns dias e ficar a vida toda

Muito se pode extrair do tema de abertura do belíssimo Burn Your Fire For No Witness. Unfucktheworld começa com aquela dose certa de Leonard Cohen (na parte desmaiada) e de Johnny Cash (quando trepa até territórios da country), de quem canta a sós com a guitarra sabendo perfeitamente quão irresistível é esta combinação, quão irresistível é esta voz carregada de abandono, esta postura de que o mundo bem pode desabar à volta que não há tristeza capaz de ombrear com a sua. 

Angel Olsen sabe muito bem para onde vai. Mais para a frente, há-de repetir a fórmula com igual sucesso em White fire, pegando no tema pelos versos “everything is tragic/ it all just falls apart” e colocando a fasquia nesse número de ilusionismo que consiste em conduzir-nos o olhar para onde quer enquanto o truque acontece subtilmente ali ao lado. Assim nos convence-nos de que é um íman para tudo quanto é trágico na condição humana. Só que por trás, suspeitamos, há um discreto sorriso de marionetista, de grande manipuladora.

Voltemos brevemente a Unfucktheworld. Apesar do tom de desespero pessoal, apesar de nos falar no estado de um mundo esfarrapado que nos entra pela casa e pelos olhos sistematicamente, impossível de não se deixar ver em todo o seu desfile de desgraça — “Isso é o mais devastador de tudo: olhamo-nos ao espelho, obcecados com o mundo e connosco, mas não demoramos mais do que um segundo a pensar nisso e avançamos para o nosso dia, sem nos importarmos” —, o título, confessa Angel Olsen com um riso que soaria envergonhado se tivesse um pingo de vergonha no corpo, surgiu-lhe escrito num lavatório, enquanto ensaboava as mãos e dirigiu o olhar ligeiramente para cima. Naquele momento pensou logo: “Isto daria um bom título de canção. E seria óptimo para arrancar o disco.”

É um episódio sintomático da coexistência entre o grandioso e o mundano que atravessa a sua música. Entre a verdade e a distorção da verdade, entre o sublime e o prosaico, entre o universal e o confessional, entre as verdades cruas do mundo e a roupa suja aos pés da cama.

Profilaxia contra a treta

Passou-se pouco mais de um ano desde Halfway Home, aquele que é tido como o álbum de estreia de Angel Olsen — antes houve apenas uma cassete de circulação limitada. E desde então, queixou-se há meses ao site Pitchfork, passou meses a atender telefonemas em que lhe perguntavam pelo útero. Na verdade, não era bem do útero que as editoras queriam saber. Mas era isso que Olsen sentia: dentro daquele cliché de que as canções são como filhos de quem as põe no mundo e as exibe a terceiros, o súbito interesse na sua prole cançonetista soava-lhe a “gostamos muito dos teus filhos, quando é que podes ter mais?”. Felizmente, ressalva ao Ípsilon, as medidas profilácticas contra a “treta da indústria musical” tinham sido tomadas em dose reforçada, nos anos em que integrou o Cairo Gang que acompanhou Bonnie “Prince” Billy. “Pude assistir àquilo que seria andar em digressão, a como seria viver na pele de música”, diz. “Mas também pude ver de perto a forma como a indústria musical se organiza em torno disso, o que me preparou para as oportunidades e para a treta que teria pela frente se não desistisse e tivesse algum sucesso.”

Em Halfway Home farejava-se distintamente a iminência de uma figura de relevo para o universo da música sedutoramente marginal norte-americana. Uma Cat Power em potência. Até porque o contacto próximo com Will Oldham (Bonnie “Prince” Billy) a levaria a acolher registos country para os quais não estava instintivamente desperta. Passando os ouvidos por High & wild, de Burn Your Fire For No Witness, ninguém o diria. Uma canção incandescente, febril, um quadro musical que poderia pertencer aos Mazzy Star se Hope Sandoval algum dia tivesse demonstrado interesse em sair do estado letárgico e abalar atrás das guitarras. O classicismo de uma Patsy Cline mas com fogo nas cordas vocais, a capacidade de evocar Cash, Cline ou Hank Williams para depois passar para a zona de acção da rock’n’roller primeva Wanda Jackson. 

Mas Angel Olsen é ainda mais desconcertante do que isso. Forgiven/forgotten, o segundo tema do álbum — imediatamente a seguir àquele Unfucktheworld que nos encosta à parede e nos rouba o apego à razão —, liga a distorção, arranca num tom que podia ser das Breeders e canta-o como se fosse Kristin Hersh. Teria dado algum jeito às editoras perceberem que Angel Olsen não é rapariga facilmente manobrável. Por isso mesmo, confessa, despachava os tais telefonemas como quem se livra (temporariamente) de um vendedor de seguros: “Eu digo-vos alguma coisa se estiver interessada em vocês.”

Canções-diálogos

Com Bonnie “Prince” Billy, Angel Olsen aprendeu igualmente a teatralizar as canções. Não apenas através da experiência algo gratuita dos The Babblers, um combo que tocava versões punk-rock de folk recôndita e em que todos se apresentavam de pijama e óculos de sol, mas sobretudo com as exigências de Oldham relativamente ao registo de vocal que as canções do seu alter-ego pediam. “Por vezes sentia mesmo que éramos uma companhia teatral”, reflecte Angel Olsen. “A nossa interacção dependia muito de como nos sentíamos em palco e por vezes, quando trocávamos olhares, isso implicava pedir respostas diferentes do habitual aos outros. Tenho saudades disso, mas é também essa energia e esse ambiente que procuro atingir nas personagens das canções que agora canto.”

Não é acidental a intromissão da palavra “interacção” no discurso de Angel Olsen. A cantora que nasceu há 27 anos em St. Louis, e que por lá começou a cantar nos cafés de onde a súbita carreira musical a retirou (servia às mesas e continuaria a servir, garante), toma a literatura por inspiração para a sua escrita, partindo regularmente de premissas como “o que poderia ter sido um diálogo entre duas personagens se o livro tivesse continuado e não terminado”. “Começo frequentemente por algo que li ou ouvi e construo a partir daí. Claro que não quero plagiar, mas pego numa ideia que pode ser resumida na interacção entre duas pessoas ou na exploração de uma situação por finalizar.” É isso que guia as suas preocupações interpretativas. Por exemplo, em Enemy, penúltimo tema do novo disco, uma delícia acústica que avança a passo de lesma, de forma pouco espaventosa, solitária confissão de alguém que não sabe como livrar-se de fantasmas que passaram pela sua cama e ainda sabem de cor como pressionar o botão certo para reanimar dores e ardores, não deixando o fogo extinguir-se para não perder esse poder. “Para mim é uma longa carta e é mais importante cantar aquelas palavras do que concentrar-me em piruetas com a voz ou encontrar alguma melodia altamente excitante.”

O tom por vezes soturno e fatalmente trágico em que Angel Olsen embrulha as suas canções induz uma tendência natural para imaginar uma figura a propósito da qual não espantaria uma qualquer notícia a dar conta de tendências suicidárias ou auto-destrutivas. Nada que provoque insónias a Olsen, não tendo, consequentemente, de se tratar com a toma mais ou menos moderada de comprimidos. Na verdade, diz, “é até libertador o facto de terem de adivinhar” quem é a pessoa que surge a defender estas canções. Evita ter de se explicar em demasia, joga de forma provocatória com essas suposições que parecem uma mera aplicação simples de aritmética: “Estamos constantemente a interpretar mal os outros. Não acho que haja um problema nisso: trata-se de descobrir um sentido, mesmo que estejamos sozinhos nesse sentido. Mas se for realmente sobre algo pessoal para mim, por muito que possa não parecer, estarei a festejá-lo, a dizer ‘isto é algo que não me incomoda’, caso contrário não o cantaria”, acrescenta. E diverte-se a revelar o espanto por haver quem pense mais nas suas canções do que ela própria: “Nunca fiz esse trabalho de psicanálise sobre aquilo que estava a criar.”

De resto, Angel Olsen estranha que se assuma uma dessintonia com a normalidade em quem canta e emociona tão simples e devastadoramente como ela o faz. Quase sem esforço. “Todos sofremos e fazemos erros”, tenta justificar-se. “É também a humanidade que me interessa conhecer nos meus ídolos. Gosto de vê-los a fazerem merda”, confessa numa gargalhada. “Tudo bem, eu também já fiz muita merda, é isso que temos em comum.” Com a subtil nuance de que nem todos pegam nesses falhanços da vida e nos põem a chafurdar neles, desejando-os e querendo-os para nós naquela mesmíssima forma.
 

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Angel Olsen
Burn Your Fire For No Witness
Jagjaguwar; distri. Popstock

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