Isto não é um jogo de xadrez

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Viciado na improvisação e obcecado por actualizar a um rito quase diário quem é musicalmente, o saxofonista Ken Vandermark toca hoje na Zé dos Bois (Lisboa) e amanhã no Sonoscopia (Porto), em duo com Paal Nilssen-Love

Em resposta a um desafio do site reddit, começou a circular, com crescente popularidade, pelos caminhos labirínticos da internet uma série de micro-histórias terríficas cuja regra é serem compostas por duas simples frases. Exemplo: “Ontem os meus pais disseram-me que já não tinha idade para uma amiga imaginária e que tinha de resolver o assunto. Esta manhã encontraram o corpo dela.” Embora não tenhamos pedido semelhante exercício a Ken Vandermark, há um pavor evidente quando relata a altura em que percebeu como tinha tomado a decisão certa ao desmembrar o seu quinteto Vandermark 5: “Encontrei um bom amigo, com quem toco frequentemente, e contei-lhe. Ele respondeu-me que não podia acreditar que tivesse acabado com o quinteto porque era uma marca muito forte.” A ideia de uma “marca”, de um caminho que possa estar mapeado antes de o saxofonista norte-americano soprar a primeira nota, é equivalente ao mais rotundo falhanço no mundo de Ken Vandermark. Uma verdadeira imagem de terror.

O exemplo do quinteto não é acidental. Para um músico fractal como Ken Vandermark, dividido entre dezenas de projectos, os Vandermark 5 eram um poiso raro de estabilidade, numa intersecção entre linguagens do free jazz, do punk e do noise. Só que após 15 anos de música ebuliente e de um derradeiro álbum (The Horse Jumps and the Ship Is Gone) tão incisivo e denso quanto os melhores registos do grupo, não seria de prever que Vandermark concluísse estar a um passo de começar a ruminar interminavelmente tudo aquilo que o quinteto explorara até então. The Horse Jump, no entanto, deixa uma fresta por onde se pode espreitar uma outra possível pista para o fim do quinteto: os dois músicos convidados, Håvard Wiik e Magnus Broo, pertencem à trupe escandinava dos Atomic, de quem Vandermark se tem tornado cada vez mais próximo. “Sinto que gravito naturalmente mais próximo das estéticas de músicos europeus”, admite. Possivelmente porque é dessas longitudes que lhe têm chegado os desafios para os quais menos está preparado. O seu sopro infernal, herdado de Ornette Coleman, Peter Brötzmann, Evan Parker ou Don Cherry, funciona habitualmente em crescendo, é um motor em aquecimento permanente quando em concerto. Por isso, quando saltita entre formações como os Fire Room, os Lean Left e os Side A, por muito que as dinâmicas se alterem radicalmente, o lugar de Vandermark é razoavelmente entendível.

Daí que ao cruzar-se com músicos como o inglês John Tilbury se veja subitamente posto em causa de uma forma que o provoca na medida certa. “Habitualmente toco numa progressão de mezzo forte para extremamente ruidoso e com ele fui de mezzo forte para extremamente suave”, recorda. “Há uma série de coisas que se pode fazer a partir dessa dinâmica, mas é raro encontrar-me nessa situação. Quando se toca com um baterista num contexto de improvisação é raríssimo acontecerem ambientes muito calmos. E as coisas mais interessantes acontecem quando estamos numa situação em que não sabemos o que fazer ou como funciona”. Dêem-lhe uma formação ruidosa e Vandermark sabe impor-se e rugir por cima de toda a gente a uma velocidade vertiginosa. Dêem-lhe espaço, quase silêncio, e o saxofonista pensa “Não sei tocar isto, tudo aquilo que conheço e a que recorro não funciona neste contexto”. “Claro que posso pegar num taco de basebol, levá-lo para uma sala cheia de vidros e destruir aquilo tudo”, ri-se. “Mas o que me interessa é ser obrigado a mudar o ponto de vista. Isso é altamente excitante”.

Do zero

Paal Nilssen-Love, baterista maravilha pertencente à trupe escandinava que tem Vandermark enfeitiçado pelos beiços, é actualmente o músico que confere uma ideia de estabilidade nas ocupações do saxofonista. Uma das razões para isso acontecer é o facto de nunca conversarem sobre a música que fazem. Em vez disso, é mais frutuoso passarem noites a ouvir música, como o músico confessa ter acontecido na véspera da entrevista. Acabado de chegar a Varsóvia, quase não dormiram a ouvir funk e música angolana dos anos 60 e 70, terminando com Eric Satie.

Aquilo que Nilssen-Love lhe oferece de único é a possibilidade de começar repetidamente do zero. Embora toquem juntos desde os tempos dos School Days, há sete anos, Vandermark nunca sente que quando sobem ao palco estão a retomar a música onde a deixaram na véspera. “Voltamos sempre ao início, em que descobrimos o que somos agora, o que é muito entusiasmante para um improvisador. Após anos e anos de termos estas conversas musicais em palco, a dois, ainda temos muito para falar. Fico muito frustrado quando chego à conclusão de que já tive todas as conversas possíveis com um músico. Mas com o Paal estão sempre a abrir-se novos caminhos.” Vandermark, no entanto, sublinha a distância que o separa da ideia de pureza da improvisação defendida por Derek Bailey, defensor “de uma abordagem mais autêntica que implica tocar com o outro pela primeira vez, por se estar a descobrir tudo, não haver passado comum, comunicar-se através de ferramentas que não se desenvolveram com o tempo”. Vandermark responde com a sua experiência em contexto de socialização: “As conversas mais interessantes que tenho acontecem com pessoas que conheço há muito tempo, se foram inteligentes, criativas e apaixonadas. Porque quero encontrá-las novamente para ter outras conversas, que nos levarão a outros lugares.”

Para muitos, pode soar extenuante, mas Ken Vandermark diz-se viciado nesta ideia de ter de provar todas as noites aquilo que vale. Na improvisação, defende, não lhe é permitido dirigir-se ao microfone e anunciar “Estou a tocar miseravelmente esta noite e não consigo fazer nada de jeito, mas se me tivessem ouvido ontem teriam ficado muito impressionados”. “Quem é que quer saber disso?”, pergunta com um riso de quem identificou com total exactidão onde é que o vício se instalou. “O que conta na música improvisada é o agora. Funciona como um processo de descoberta em tempo real e assim que isso desaparece deixa de ser descoberta, passa a ser recriação de algumas ideias. Isso já é música interpretativa e eu preciso do sentimento de risco. Isto não é um jogo de xadrez, é uma interacção altamente acelerada”. Em que, quando corre bem, nem ele sabe o que está a fazer.

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