Os Quilt são de outro tempo, os Quilt são deste tempo

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O novo álbum é um compêndio caleidoscópico de pop que fugiu da cidade para procurar um refúgio à banalidade barata do presente. "Held In Splendor" é uma preciosidade

Avançamos por Mary Mountain acompanhando a voz feminina dos Quilt, a de Anna Fox Rochinski, que é seguida em fundo pelas de Shane Butler e de John Andrews. A canção faz-se da folk que se cobriu de electricidade e, pelo caminho, descobriu que o som eléctrico podia ter propriedades psicadélicas interessantes. Ou seja, é uma canção que reúne ao poder que as palavras têm para nos transportar (como acontecia com a velha folk) as possibilidades de sonho abertas pela reunião dos sons certos: uma guitarra reverberante, o baixo pulsando na cadência certa, a banda toda rodopiando à volta de um teclado quando o refrão se despede. “Oh child, you keep living that way / in your own time”, canta Anna Fox Rochinski. A banda nascida em 2010, quando dois recém-licenciados em Artes na Universidade de Boston, Anna e Shane, decidiram explorar mais que as artes visuais, está resumida naqueles versos.

Os Quilt são de outro tempo: o dos The Mama & The Papas das harmonias vocais solares, o dos Jefferson Airplane pintalgando a folk de LSD e de rock’n’roll, o de velhos banjos assomando sobre melodias pop para festim popular, o dos órgãos Vox faiscando gloriosamente perante nós. Os Quilt são, inegavelmente, deste tempo:Held in Splendor, o segundo álbum da banda, sucessor da estreia homónima de 2011, é um compêndio caleidoscópico da pop de ontem e de hoje que fugiu da cidade e que se embrenhou florestas e discografias com florestas dentro em busca de um qualquer refúgio à banalidade barata do presente.

John Andrews, o baterista que se juntou à banda durante a digressão do primeiro álbum, há-de falar-nos de como muita da música que mais a inspira, a nascida na Costa Oeste dos EUA na década de 1960, soa diferente, mais correcta, quando a ouvem “atravessando o deserto”. Irá dizer-nos que, apesar de Held In Splendor ter sido gravado em Brooklyn com Jarvis Taveniere, dos Woods (um dos nomes de referência do novo-velho psicadelismo de raízes folk), a música que nele ouvimos nasce das muitas viagens e dos “tempos passados em parques naturais”. Há aqui um bucolismo evidente: ou melhor, um desejo de passar para canção a sensação de abandono às delícias da vida que corre lentamente longe do corrupio citadino. Mas os Quilt de Held in Splendor são mais que essa belíssima peça acústica, cantada por Anna Fox Rochinski e chamada Talking trains, que é habitada por microscopic doves e que tem a densidade de clássico perdido arrancado às garras do tempo.

Ela e eles

Este álbum é resultado da imaginação generosa de três cantores compositores – ela toca guitarra, o ele Shane igualmente, o outro ele, John, ocupa-se da bateria. Acreditamos nestas canções, embrenhamo-nos nelas sem parar para reflectir se será este o seu tempo. Existem, agora, e foi um prazer descobri-las – que fazer quando a voz evanescente que nos embala em I sleep in nature, a última canção, desagua num crescendo arrebatador, órgão ao alto, e desejamos ficar ali mais tempo, todo o tempo possível?

“A suspensão da descrença é o objectivo principal das manifestações artísticas. Esquecer tudo o que está à volta, excepto a arte que tens perante ti”, acredita John Andrews. Estudante de cinema que abandonou o curso antes do fim, Andrews elabora a ideia com uma referência, no contexto dos Quilt, inesperada. “Quando vês oShining, não pensas na tua namorada ou que tens que ir trabalhar no dia seguinte. Só te interessa o Jack Nicholson a subir aquelas escadas perante a mulher com o taco de basebol. Se as pessoas sentirem isso com o nosso álbum, é maravilhoso”. Não esperávamos que o “filme de terror para acabar com os filmes de terror” de Stanley Kubrick fosse invocado em referência à música dos Quilt, mas considerando que John Andrews é também realizador de animação (desenho à mão, diapositivo a diapositivo; trabalho de artesão, portanto) e que lhe vimos entretanto um par de curtas, faz sentido: há neles um humor absurdo, violento, surreal, que, a-posteriori, torna a referência menos inesperada. Os Quilt são, de resto, criação comunitária maior que as partes envolvidas. Algo notório com a chegada do segundo álbum. Foi gravado com a colaboração de uma série de músicos amigos que juntaram violino, saxofone, lapsteel ou outros instrumentos à música da banda. “Tínhamos por certo que queríamos utilizar mais instrumentos. Além do mais, ter outras pessoas presentes no estúdio altera a experiência. A personalidade deles acaba por se combinar com a do material que trabalhamos”. Dá o exemplo de “Songs For Beginners”, o primeiro álbum a solo de Graham Nash, editado em 1971. “É um álbum a solo, mas toca nele o Neil Young, o Jerry Garcia, o David Crosby. É isso que o torna especial”. 

Num momento em que o termo psicadélico continua a surgir recorrentemente na música popular urbana (os Tame Impala, os Thee Oh Sees, Ty Segall), os Quilt são como que um magnífico sonho anacrónico. Da dançável Tired & buttered, um twee-pop via Haight-Ashbury, a essa A mirror que podiam ser os Real Estate em residência com os Olivia Tremor Control, as suas canções parecem surgir de um tempo mais indefinido que distante. “Queríamos que tivesse um ‘feeling’ cinematográfico, que fosse vivido como se assistíssemos a um filme”, explica John Andrews. “Momentos diferentes e emoções diferentes, mas com temas semelhantes, o tempo e a morte, a guiá-los” - e as belíssimas vozes do trio a conduzir a narrativa.

Íamos com imagens de luminosidade beatífica e com o som de harmonias de vozes encantadoras na cabeça quando ligamos para John Andrews. Estávamos sob o efeito das magníficas canções de Held In Splendor. Andrews atendeu o telefone. Perguntámos pela digressão, cujos relatos apontavam um reconhecimento crescente da banda, com boas salas e a imprensa americana cada vez mais atenta. A resposta não foi a esperada. “Tivemos um acidente ontem à noite enquanto atravessávamos o Arizona e a nossa carrinha está na oficina”, contou o baterista.

Uma placa de metal de dois metros atravessada na estrada, o condutor incapaz de se desviar. A colisão inevitável, a carrinha em chamas e a banda a correr para longe dela, com medo que explodisse. Felizmente, não só não explodiu como se salvou o equipamento e tudo o resto. “Foi muito assustador”, resume Andrews.

Se o acidente for transformado em música dos Quilt, a carrinha ganhará impulso para viajar cosmos fora e voltar para aterrar no Arizona, onde três pessoas trautearão odes às maravilhas do deserto sob o tapete sonoro de um órgão vintage. Será uma grande canção.
 

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Quilt
Held in Splendor
Mexican Summer; distri. Popstock 

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