O vanguardista que veio do passado

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Mammane Sanni foi o primeiro nigerino a possuir um sintetizador. Do seu álbum de estreia fizeram-se cem cópias, das quais restaram duas. A descoberta de uma delas permitiu a reedição e redescoberta de um génio, que toca amanhã em Lisboa

Podia ser a banda sonora de um jogo do Spectrum, o passado do futuro da música, a versão sintética de uma tradição que desconhecemos mas é um dos mais bem guardados da música africana — da música africana de agora e da música africana de final da década de 1970. Estamos a falar de Mammane Sanni, nigerino que tocará ao vivo na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, amanhã, pelas 22h. É mais do que um acontecimento: é um daqueles autênticos milagres em que esta década tem sido frutífera.

De Lou Bond a Sixto Rodriguez, passando pelo enorme guitarrista de high-life do Gana Jean Noel, a quantidade de músicos descobertos nos últimos anos por coleccionadores de objectos obscuros parece não ter fim. Muitos têm histórias extraordinárias e a sua redescoberta corresponde a uma bizarra mistura de acaso com investigação meticulosa. Mammane Sanni, domador de sintetizadores nigerino, é um desses casos.

Sanni terá sido “provavelmente o dono do primeiro órgão electrónico do Níger”, diz-nos hoje em dia o homem, através do Skype, algures na Europa, a meio de uma digressão. Não é a primeira vez que sai do seu país, mas é a primeira que vem ao Velho Continente. Em seu nome tinha, até há pouco tempo, apenas uma cassete, intitulada Mammane Sanni et Son Orgue. Agora há igualmente um vinil, recém-editado pelo musicólogo americano Christopher Kirkley, que descobriu a mencionada cassete num arquivo musical na capital do Níger. Para que se tenha a noção da dimensão da sorte de Kirkley, Sanni diz a dada altura que, tanto quanto sabe, só existem dois exemplares dessa edição da cassete — “uma tenho eu, a outra estava no arquivo”.

Kirkley ficou fascinado com o que ouviu e não é razão para menos: munido de um pequeno sintetizador com caixa de ritmos, Mammane fez um álbum que soa a um antecessor da música dos Boards of Canada ou a um primo afastado do trabalho dos Kraftwerk. Soa à música do velho jogo Rick Dangerous, a uma tripe alucinogénea no seu minimalismo escapatório. Na realidade é “uma imitação da música que eu ouvia na rádio”, conta Mammane, “ou uma tentativa de tocar clássicos nigerinos; mas como eu não sabia tocá-los, ficou assim”. Para um ocidental, um tema como Tunani, que é sobre “a tristeza de perder todas as colheitas, ficar sem nada”, recorda a música de engate em cabaret de bola de espelhos dos anos 1980 — mas tremenda música de engate.

A máquina de fazer CDs

Há dois tipos de músicos africanos reeditados no século XXI por coleccionadores brancos: os músicos que lançaram apenas um disco, ou um par de singles, e eram obscuros até para os seus conterrâneos, ou aqueles que em determinado momento foram estrelas e depois, ora à conta de mudanças de regime ou de moda musical, deixaram de tocar. 

Sanni pertence ao primeiro grupo, apesar de a música electrónica ter demorado décadas a pegar em África. 

Veio “de uma família privilegiada”, tendo o seu pai sido “coronel na primeira Guerra Mundial”. O próprio Mammane tinha um bom emprego: “Trabalhava para a Unesco quando comprei o sintetizador”, conta. Em 1974 comprara “uma guitarra e tentava tocar o rock francês a que tínhamos acesso”. Depois, “em 1978, numa reunião da Unesco”, conheceu “um elemento da delegação do Ruanda que tinha um órgão italiano, um Oro e tive de comprar aquele órgão”. 

Foi nesse mesmo ano que gravou o seu primeiro e único disco, Mammane Sani et Son Orgue, composto por temas “inspirados pelos dramas do povo ou dedicadas à minha namorada da altura”. A ambição de Mammane era tão só “reinterpretar o folclore nacional, fazer música Tuareg com outro ritmo, coisas assim”. 

Como muitos discos africanos, o de Mammane não foi propriamente feito em grandes condições: “Gravei-o nos estúdios na Rádio Nacional em dois takes, porque ainda não dominava bem o teclado. Quer dizer, só quando me viram tocar Tunani é que me disseram que tinha de fazer a melodia com a mão direita e o ritmo com a esquerda”. 

Inicialmente o plano era fazer uma edição alargada, num “projecto conjunto com o Ministério da Cultura”, mas “esse projecto ruiu e foram feitas muito poucas cassetes, não mais de cem”. O que aconteceu às outras 98, ninguém sabe. Apesar deste azar, Mammane não caiu na completa obscuridade no seu país: “Tive o meu próprio programa de televisão”, conta. O programa, apropriadamente, chamava-se Mammane Sanni et Son Orgue Électronique. Sanni conta que o objectivo do programa era “ajudar os miúdos que tinham qualidades artísticas. ‘Queres ser um rufia ou um artista?’, era o que lhes perguntava”.

Não voltou a gravar, e não sabe bem explicar porquê. De qualquer modo, “as pessoas gravavam as [suas] músicas nos concertos e faziam cassetes dessas gravações”. Já no século XXI um amigo comprou-lhe “uma máquina que permitia transformar a cassete em quatro CDs de uma assentada”, pelo que cópias de Mammane Sanni et Son Orgue circularam por aí. 

De qualquer modo, no seu país natal ele já está imortalizado: a sua música ouve-se “na televisão, como continuidade ou separador de programas”. E, ao longo de todos estes anos foi “sempre tocando – em concertos, em bailes, em casamentos”. Também foi acumulando sintetizadores, que lhe foram sendo oferecidos. E foi “continuando a compor”. Se tem canções novas? “Oh, tenho mesmo muitas”.

Ainda aparentemente sem ter a completa noção do que a reedição do disco significa, diz estar “muito contente com esta reedição em vinil”. Depois faz uma afirmação curiosa: “Quando me deram a máquina que permitia fazer CDs, por vezes estes estragavam-se, por isso é muito melhor ter este vinil”. Ou seja: o importante é a música poder ser ouvida em condições – Sanni parece indiferente ao facto do Ocidente estar a descobri-lo agora.

“Os meus novos sintetizadores permitem-me programar os ritmos do Níger muito melhor”, diz em fim de conversa. “Às vezes até tenho um som de fundo, como as cordas”. Mammane Sanni é um puro, e um vanguardista descoberto tarde. O que significa que este é o momento ideal para descobrir a sua música.

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